
Depois da parceria em Meu Nome É Coogan (1968) e Os Abutres Têm Fome (1970), Clint Eastwood e o diretor Don Siegel fizeram um desses filmes que, na própria época, ninguém “pega” muito bem, mas que vão crescendo em estatura com o passar do tempo: O Estranho que Nós Amamos. Numa resenha de 31 de dezembro de 1970, a Variety dizia que o filme “fazia rir em todos os lugares errados”, e que Siegel “pesava a mão”. É compreensível: o mundo com a cabeça ainda na década do flower power e a dupla se saía com uma história perversa, encharcada de humor negro e de truculência psicológica, sobre os jogos de poder que um soldado nortista institui na escola de mulheres em que vai se abrigar, no Sul da Guerra Civil de 1861-1865. (Pois o mundo não vira nada ainda: dentro de um ano, Siegel e Eastwood chutariam de vez o pau da barraca com o explosivo Perseguidor Implacável.) Hoje, porém, O Estranho que Nós Amamos é reconhecido como o grande ponto de inflexão na colaboração entre os dois, além de uma influência decisiva na longa carreira de Eastwood como diretor, que então estava apenas se iniciando.

Por que então Sofia Coppola haveria de mexer com um ícone desses? Ora, porque ele oferece uma grande oportunidade de, mantendo toda a estrutura original do filme de Siegel (e do romance em que ambos se baseiam), inverter a equação: e se esse homem que está muito ferido e em dupla desvantagem (ele é um, elas são sete; e como soldado inimigo, ele pode ser denunciado a qualquer momento) calculasse que há mais ganho em cortejar essas mulheres do que em colocá-las em pé de guerra? Interpretado por Colin Farrell com uma ótima calibragem de sedução e submissão, o soldado John McBurney agora discretamente testa os pontos fracos de Nicole Kidman, Kirsten Dunst, Elle Fanning e as outras meninas, até ter certeza de onde pode pisar mais firme com cada uma delas. Elas, por sua vez, sorvem dessa presença masculina como quem está morrendo de sede – tentando manter a compostura e a brancura dos vestidos, e ao mesmo tempo fazendo o trabalho que antes era incumbência dos escravos, todas as sete estão se sentindo diminuídas e esquecidas num Sul em que ser mulher é um perigo constante, e um tédio infinito. Sofia, enfim, troca a potência do filme original por algo mais sinuoso e astucioso, e demonstra que pode haver dois jeitos certos de fazer a mesma coisa.
Leia a seguir a resenha completa:
O Flanco Aberto
Na versão de Sofia Coppola para O Estranho que Nós Amamos, um soldado da Guerra Civil americana refugia-se numa escola de mulheres e arma uma teia de sedução
Cineasta que não gosta do caminho mais direto mas sabe aonde quer chegar, Sofia Coppola pinta uma Arcádia no sul americano da Guerra Civil: em uma escola para meninas regida com rigor maternal pela senhorita Martha (Nicole Kidman), a fumaça das batalhas é perceptível – mas a distância, obscurecida pelo musgo que pende das árvores e filtra a luz, protegendo do olhar a mansão ocupada por sete mulheres. Capinando a horta, carregando água (os escravos fugiram faz tempo) ou conjugando verbos em francês, Martha, a professora Edwina (Kirsten Dunst) e as cinco alunas veem as fileiras de soldados passar – sempre do lado de fora. Quando algum deles toca o sino, Martha esconde as meninas e abre a porta com um revólver na cintura. Mas é na forma de erotismo, não de intimidação, que o sexo oposto vem se instalar no interior do casulo feminino. Amy (Oona Laurence), uma das alunas mais jovens, recolhe da mata John McBurney (Colin Farrell), um soldado nortista gravemente ferido. É duvidoso que ele sobreviva, mas Martha tira o chumbo de sua perna, costura a ferida e, enquanto ele está desacordado, o banha – e fica ela própria encharcada de suor com o contato íntimo. A toda hora, Martha afirma que vai entregar o nortista como prisioneiro às forças sulistas. Mas nem ela nem suas protegidas querem se privar dessa inesperada (e muito bem-apessoada) presença masculina.

Baseado no romance de 1966 do americano Thomas Cullinan, e também no filme homônimo que Don Siegel dirigiu e Clint Eastwood estrelou em 1972, O Estranho que Nós Amamos repropõe o conceito do material original por meio de uma sutil mudança. Ainda que, como Eastwood, Farrell faça o papel de único galo do terreiro, a sua figura é agora muito mais reativa e suave do que propositiva e agressiva. McBurney admite ser desertor, e deixa claro que adoraria permanecer onde está, em troca de trabalho – e talvez de algo mais. “Suas rosas precisam de atenção”, diz ele, numa double entendre casual. Como persuasão, o soldado estuda suas anfitriãs e dá a cada mulher precisamente aquilo que ela deseja. Com Martha, é todo cavalheirismo e admiração. À insatisfeita Edwina, ele acena com romance. Para a indócil Alicia (Elle Fanning), dirige os olhares libidinosos. Amy ganha atenção fraterna e a perfeccionista Jane (Angourie Rice), elogios.

O homem como a parte do relacionamento que se molda à outra e busca aprovação pode soar como um conceito extemporâneo no século XIX, mas tem uma medida de raiz histórica no Sul rural deixado a cargo das mulheres. McBurney entende que está em desvantagem; a certa altura, porém, ele erra o cálculo, favorecendo uma em detrimento de outras. O caldo entorna, e o soldado parte para o último recurso – a força. Como em outros filmes de Sofia Coppola, em particular As Virgens Suicidas (1999) e Maria Antonieta (2006), ambos também com Kirsten Dunst como pivô da ação, o círculo feminino parece vacilar, atemorizar-se e enfraquecer-se – mas, afinal, fecha-se, procurando alguma maneira de expelir de seu meio o corpo estranho. Alardear como feminista a versão de Sofia é reduzir a perspicácia da diretora, e o seu comentário ardiloso.
Isabela Boscov Publicado originalmente na revista VEJA no dia 09/08/2017 Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A © Abril Comunicações S.A., 2017 |
Trailer
O ESTRANHO QUE NÓS AMAMOS (The Beguiled) Estados Unidos, 2017 Direção: Sofia Coppola Com Nicole Kidman, Kirsten Dunst, Colin Farrell, Elle Fanning, Oona Laurence, Angourie Rice Distribuição: Universal |