
Um novo – e tenebroso – círculo do inferno.
Como explicar a profundidade do horror exposto em O Clã, que estreia esta semana? Qualquer descrição do caso da família Puccio – e escreveu-se copiosamente sobre ele na Argentina – será sempre insuficiente.
Para se ter uma medida do quão chocante e doentio foi aquilo que se passou na casa dos Puccio, em Buenos Aires, entre 1983 e 1985, é preciso bem mais do que simplesmente relatar os fatos. É preciso um cineasta como Pablo Trapero, tão inflamado e irredutível (e ao mesmo tempo tão formidavelmente técnico) que não dá à plateia um segundo de paz: os personagens estão sempre ali, enfiados na cara do espectador, que não tem como fugir deles ou defender-se do que está vendo. É necessário, também, um ator com a resistência épica de Guillermo Francella, capaz de mergulhar em um personagem como Arquímedes Puccio, o tenebroso patriarca dos Puccio, sem fraquejar em um instante sequer. E é preciso ainda um ator com a doçura de Peter Lanzani, que faz Alejandro, o mais assediado e torturado dos filhos de Arquímedes: é principalmente do ponto de vista de Alejandro, sempre vacilante e dividido, que se veem os acontecimentos.
Arquímedes Puccio, contador de formação e dono de rotisserie de fachada, era um dos vários “empreiteiros” contratados pela ditadura argentina para fazer sumir os desafetos do regime militar. A certa altura, os serviços desses empreiteiros passaram a ser utilizados também com fins mais pragmáticos: fazer caixa por meio de sequestros convencionais, sem motivação política, apenas para recolher o dinheiro do resgate – e nunca devolver as vítimas à família. Em 1982, porém, a situação começou a azedar para a ditadura, com a derrota na Guerra das Malvinas. Em 1983, a junta militar caiu, e iniciou-se um intrincado retorno à democracia. Profissionais como Arquímedes Puccio ficaram sem trabalho. E alguns deles, como o próprio Arquímedes, decidiram lançar-se nos negócios por conta própria.
Quando a polícia chegou à casa do bairro de classe média de San Isidro, em 1985, e libertou uma empresária de 65 anos com sinais de maus-tratos brutais, três outras pessoas já haviam perdido a vida no esquema de Arquímedes – dois rapazes e um homem de meia-idade. Já parece hediondo? Pois não é nem o começo da história. Arquímedes era um tipo singular de psicopata. Não só enriquecia com os sequestros seguidos de assassinato e tirava de sua frieza grande orgulho profissional, como enredava obsessivamente a família nas suas atividades: os sequestrados eram mantidos na sua casa, acorrentados no banheiro ou, mais tarde, no porão, sem que Arquímedes e sua mulher, Epifanía (Lili Popovich), fizessem grande esforço para ocultar dos filhos mais novos a presença deles. Alejandro, um rapaz popular, cheio de amigos e jogador de rúgbi de futuro, era obrigado pelo pai a participar de todas as etapas do esquema – o primeiro sequestrado, aliás, foi um jogador do seu time de rúgbi com quem Alejandro desafortunadamente iniciara uma amizade. Quando Alejandro começou a dar sinais de que não mais suportava a pressão, Arquímedes mandou voltar da Nova Zelândia um outro filho, Maguila (Gastón Cocchiarale), que entrou no esquema imediatamente, sem titubear nem questionar.
Mas, da mesma forma que em seus outros filmes (El Bonaerense, Família Rodante, Leonera, Abutres, Elefante Branco), Pablo Trapero tem um cenário maior em vista. Não é no circo de horrores que está seu interesse, e sim nas razões pelas quais ele se deu: assim como Arquímedes meticulosamente alicia a família e a torna a cúmplice dos seus crimes, a ditadura militar revelou a ele seu “potencial”, encorajou-o, treinou-o, deu-lhe oportunidades e o afagou, tratando-o como amigo próximo e pessoa de importância. É esse o efeito dos regimes corruptos: despertar os monstros do seu estado de latência, e disseminar a degradação não só no sistema político, mas no íntimo dos indivíduos e na mesa do jantar em família.
Trailer
O CLÃ(El Clan)Argentina/Espanha, 2015Direção: Pablo TraperoCom Guillermo Francella, Peter Lanzani, Lili Popovich, Gastón Cocchiarale, Stefanía Koessl, Franco Masini, Antonia Bengoechea, Giselle Motta, Fernando Miró, Juan Cruz Márquez de la SernaDistribuição: Fox