Jura que você nunca viu… “Janela Indiscreta”?
Talvez o melhor filme (a escolha é difícil) de Alfred Hitchcock, a história de um repórter preso a uma cadeira de rodas põe o espectador no lugar do diretor

Com uma perna engessada até o quadril, o fotógrafo jornalístico “Jeff” Jefferies está temporariamente aposentado de sua vida de aventuras mundo afora, aquela que o leva para o centro de guerras civis e a lugares tão primitivos que, em suas palavras, um sujeito tem de se dar por sortudo se conseguir uma refeição de cabeças de peixe com arroz. É na sala de seu pequeno apartamento nova-iorquino, contudo, que Jeff irá enfrentar seus piores desafios: a compulsão em espiar a vida alheia — afinal, ele é um repórter — e a intimidade com uma mulher tão irresistível que casamento é a única coisa que se pode propor a ela. Jeff é o protagonista de Janela Indiscreta, o melhor filme de Alfred Hitchcock (ou um de seus três ou quatro melhores filmes; a escolha é difícil).

Assim como ler Anna Karenina de Tolstoi ou ouvir a Quinta Sinfonia de Beethoven, ver ou rever Janela Indiscreta é indispensável (a tela grande seria ideal, já que o vídeo amarrota os enquadramentos magistrais do diretor; mas pelo menos o filme está disponível no streaming, no Looke e no NOW). Ali está o testamento de um gênio, e Hitchcock foi tão feliz e arguto na sua concepção do filme que nada nele, da trama às interpretações, envelheceu. Ou seja, o prazer que é capaz de proporcionar continua intacto nestes 65 anos que o separam de sua estreia. Janela Indiscreta, finalmente, oferece ao espectador uma oportunidade única. É como se a sua poltrona fosse na verdade a cadeira de Hitchcock. Assistir à fita equivale a ver a vida, e o cinema, pelos olhos do protagonista e, por extensão, do cineasta. Preso a uma cadeira de rodas por conta de sua perna quebrada, Jeff não pode fazer nada além de olhar e “dirigir” a namorada e a enfermeira, encarregando-as de desvendar os acontecimentos intrigantes do apartamento à sua frente, no qual um marido insatisfeito parece ter dado cabo de sua esposa inválida. Ou será só a imaginação do fotógrafo, angustiado com a idéia de cair ele próprio numa armadilha conjugal?

Se Hitchcock se tornou o mestre do suspense (o lugar-comum é incontornável), é porque sabia que não há nada mais imprevisível do que a vida dos simples mortais. Em Janela Indiscreta, ele eleva essa convicção à máxima potência. Há mais excitação e intriga em cada uma das janelas que Jeff observa do que em todos os locais exóticos que ele percorreu em sua carreira. O que vai acontecer, por exemplo, com a solteirona que finge ter convidados para o jantar e bebe por dois? Quem vai se matar primeiro, ela ou o pianista que não consegue compor? Num outro apartamento, um casal em lua-de-mel não sai do quarto, mas passa da paixão diretamente para a recriminação: “Se eu soubesse que você ia largar o emprego, não teria me casado”, acusa a mulher. À frente, uma bailarina se deixa cortejar por vários homens — um sinal de encrenca? E, claro, há o caixeiro-viajante que cuida da mulher doente e se exaspera com suas queixas intermináveis.

O cinema americano de hoje tem alguma dificuldade em enxergar as tonalidades de cinza que existem entre o preto e o branco — mas não Hitchcock (aliás, inglês), que de maniqueísta não tinha nada. Nenhum de seus heróis é inteiramente bom, e a maioria de seus vilões tem características que ganham a simpatia da plateia. Em Janela Indiscreta, James Stewart, que sempre foi o sujeito honesto das telas, se mostra um ator corajoso. Enverga com brilhantismo o papel do homem que se excita e se envergonha com as coisas erradas que faz. Por isso é fácil torcer por ele. “Em todos nós, há um 11º mandamento que diz: não serás apanhado”, argumentava o diretor. A extraordinária Thelma Ritter sabe temperar cada uma das falas da enfermeira com a dose certa de vinagre. Raymond Burr é visto apenas a distância, mas transmite todo o cansaço e o desespero de um marido preso a uma mulher fraca e dependente. E, no papel da mulher perfeita, o diretor escalou a própria: Grace Kelly. Resplandecente como a socialite Lisa Fremont, que desfila modelos do “new look” dos anos 50 como se Christian Dior tivesse mudado a moda em sua homenagem, Grace adiciona estilo a uma personagem graciosa e discretamente ousada. É Lisa, por exemplo, quem faz a corte a Jeff e sugere que o relacionamento tome um caráter mais sexual. É dela a ideia de seduzi-lo entrando às escondidas na toca do lobo — o apartamento da frente. E é para protegê-la que o fotógrafo coloca a vida em risco. Hitchcock achava as mulheres bonitas sumamente perigosas. “Uma concessão ao mal”, dizia (nos anos 50, ainda se podia dizer coisa assim).

Com Janela Indiscreta e com todos os seus outros grandes trabalhos (há pelo menos quinze), Hitchcock fez muito mais do que apenas uma série de filmes magníficos. À exceção talvez de Steven Spielberg, ninguém foi capaz de modificar tanto o gosto do público quanto ele. Mais do que um diretor de filmes, Hitchcock era um diretor de espectadores. Ainda hoje, se a plateia de um suspense sabe que deve desconfiar de tudo o que os personagens dizem e fazem, é porque ele repassou essa lição incontáveis vezes. Uma de suas características era ser um crítico implacável de si mesmo, que acha defeitos em tudo o que faz. Quando lhe indagaram sobre Janela Indiscreta, contudo, não conseguiu enxergar ali uma falha. “Para mim, colocar o público na mente do personagem é cinema em sua forma mais pura. E acho que Janela Indiscreta é o melhor exemplo disso”, declarou. Impossível não concordar.

Finalmente… uma palavra sobre Grace Kelly: para Hitch, nenhuma loira a superava

“Fria como o gelo por fora — mas por dentro, rapaz!” Hitchcock usou essas palavras para descrever a personagem de Grace Kelly em Ladrão de Casaca. Elas, no entanto, se ajustam também à personalidade da atriz. O diretor, que se casou com uma morena, adorava as loiras — desde que elas exibissem temperaturas polares na superfície. Isso explica sua predileção por Grace, a socialite da Filadélfia que se casaria com o príncipe Rainier, em 1956. O diretor, aliás, não se perdoava por ter ajudado a pôr um ponto final na carreira da atriz. Foi durante as filmagens de Ladrão de Casaca, nas proximidades de Mônaco, que ela conheceu o príncipe e iniciou um romance com ele. Não era sua primeira aventura do gênero. Embora Grace fosse discreta, toda Hollywood sabia de seus casos com astros como Clark Gable, Ray Milland e William Holden, ou ainda com figuras do jet set, como o estilista Oleg Cassini. A atriz aprontava muito e tinha uma queda por homens mais velhos. Gable usava dentadura, Milland não dispensava a peruca e Cassini tinha uma fileira de divórcios no currículo. Rainier também não era conhecido pelo espírito jovem. Ao que tudo indica, sua intolerância teria acelerado a decadência da bela, que entrou na meia-idade em luta com a balança e o álcool. Ao morrer num acidente, em 1982, com 52 anos, ela pouco lembrava a estrela de outrora. Para isso também servem programas como rever Janela Indiscreta. Na tela, Grace nunca será menos do que perfeita.