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Isabela Boscov

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No Coração do Mar

Por Isabela Boscov Atualizado em 30 jul 2020, 23h57 - Publicado em 3 dez 2015, 20h58

Leia em seguida a minha resenha publicada na revista Veja.


História de pescador.

Chega a ser terrível a beleza de No Coração do Mar, que reconstitui o episódio que inspirou Moby-Dick – o naufrágio, em 1820, do baleeiro Essex.

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Em um porto distante, a tripulação ouve um relato atiçador de um capitão espanhol que perdeu o navio, o ofício e um braço: a alguns milhares de quilômetros da costa ocidental da América do Sul, onde o oceano é uma espécie de deserto sem ilhas nem outras embarcações, as baleias nadam aos cardumes. São tantas que em um único dia, diz o capitão, teria sido possível a ele encher o porão com 3 000 barris de óleo de cachalote – não fosse o macho feroz e gigantesco, de mais de 30 metros de comprimento, que atacou e destruiu seu navio. O capitão George Pollard (Benjamin Walker), o imediato Owen Chase (Chris Hemsworth) e o contramestre Matthew Joy (Cillian Murphy) se entreolham: uma lorota, com certeza, agigantada pelo rum e pelo fantasma das perdas. Caso raro em sua convivência atribulada, desta vez Pollard e Chase estão de acordo. Há meses no mar e com apenas uns poucos barris de óleo rolando pelo porão vazio, é para aí, para junto desse cardume isolado na imensidão, que eles têm de levar o pequeno baleeiro Essex. Como se vê no deslumbrante No Coração do Mar, porém, o espanhol não pecou pelo exagero. A água fervilha de cachalotes, fonte do óleo que então, nas primeiras décadas do século XIX, iluminava o mundo. E entre eles nada o macho imenso, “branco como alabastro”, que logo vai colocar o Essex na história – a real e a da ficção literária.

Adaptado do livro também ele intitulado No Coração do Mar, uma cuidadosa reconstituição do infortúnio do Essex publicada em 2000 pelo historiador e romancista Nathaniel Philbrick, o filme que estreia nesta quinta-feira no país mostra como a baleia branca perseguiu e atacou o navio com uma deliberação inatural, até fazê-lo em pedaços. A tripulação se refugiou em três botes, e neles ficou à deriva durante meses. As provisões recolhidas às pressas enquanto o Essex ia a pique rapidamente acabaram, e os sobreviventes se viram reduzidos à mais aterrorizadora das contingências – alimentar-se dos companheiros. Primeiro, dos que morreram de fome e exaustão. Depois, dos sorteados em uma loteria macabra. Tão depauperados e enlouquecidos estavam os marujos que em pelo menos um dos botes eles nem tiveram forças, ou lucidez, para jogar as ossadas ao mar. Quando foram resgatados, estavam rodeados delas. O caso virou lenda nas comunidades baleeiras americanas como Nantucket, no estado de Massachusetts, de onde partiam os pescadores. E tornou-se ainda mais célebre em sua versão ficcional – o Moby-Dick de Herman Melville, um dos tótens da literatura mundial.

O filme começa justamente por aí, pelos esforços do jovem Herman Melville (Ben Whishaw), então um escritor de êxito e prestígio medianos, para persuadir o último remanescente do Essex a contar sua verdadeira história. O velho Thomas Nickerson (Brendan Gleeson) reluta: passados trinta anos do episódio tétrico de 1820, ele jamais disse palavra a respeito, nem mesmo à sua mulher. Dinheiro e uísque, porém, encorajam o desabafo de Nickerson, um dos oito homens que voltaram vivos do périplo no Pacífico Sul. “Eu tinha 14 anos…”, começa Nickerson – e está claro quem ele se tornaria no romance de 1851 de Melville: o narrador que se apresenta com uma das sentenças inaugurais mais célebres já escritas, “Chamem-me Ishmael”.

A história do Essex, diz o velho, é na verdade a história da rivalidade entre Owen Chase, primeiro homem de sua família a trocar a terra pelo mar, e George Pollard, nascido dentro da tradição naval de Nantucket. Chase é o talento marítimo verdadeiro. Mas Pollard arrebata dele o posto de capitão; nome e dinheiro falam mais alto. Desde o início, a rixa entre os dois põe a embarcação e seus tripulantes em perigo. E, na visão supersticiosa dos marinheiros, é ela também que atrai a má sorte que segue o Essex, que vai vagando cada vez mais longe em busca de suas presas, até terminar no deserto azul em que por fim naufragou.

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Dirigido por Ron Howard, de Apollo 13, Uma Mente Brilhante e Rush, com um classicismo visual e uma sobriedade que servem muito bem ao tema, No Coração do Mar abarca vários dos aspectos que se alinhavam à história do Essex. Por exemplo, como a crescente demanda global pelo óleo de cachalote foi exterminando os habitats da espécie e obrigando as tripulações a pôr a vida em risco em viagens cada vez mais sofridas, perigosas e demoradas (dois ou três anos sem retornar ao porto de origem era coisa comum). Assim como o australiano Peter Weir em Mestre dos Mares, de 2003, a última grande aventura do gênero a chegar aos cinemas, o americano Howard filma de maneira amorosa a criatura quase viva que é o navio – as velas inchadas, o deque aberto para as ondas e o ambiente fétido do convés inferior, o emaranhado de cordas e o madeirame. Já as cenas de caça são de uma beleza terrível: para corações contemporâneos, é doloroso ver os gigantes marinhos sendo perfurados e retalhados – e ao mesmo tempo é tão insana a ideia de partir à caça deles em frágeis botes a remo, com harpões rústicos lançados no muque, que é impossível não admirar a imponência da batalha.

Há um tantinho de retoque dramatúrgico em No Coração do Mar. Na verdade, o capitão Pollard e o imediato Chase já haviam navegado juntos antes; seu antagonismo resultou muito mais da maré de azar do Essex na viagem de 1820 do que de uma promoção indevida. Pollard não era mau marujo, também. Quando o Essex se perdeu, ele sugeriu rumar para Oeste, para as Ilhas Marquesas – mas a ideia vencedora foi a de Chase, de seguir em outra direção, rumo à América do Sul. Especula-se que, se Pollard tivesse prevalecido, talvez mais homens houvessem sobrevivido, e em condições bem menos tétricas. “Se”, porém, é aquela palavra brevíssima que separa o épico do banal. E é ela que, na direção segura de Howard, persegue o Essex, mais furiosa que qualquer baleia branca.

Isabela Boscov
Publicado originalmente na revista VEJA no dia 02/12/2015
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Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
© Abril Comunicações S.A., 2015


NO CORAÇÃO DO MAR
(In the Heart of the Sea)
Estados Unidos, 2015
Direção: Ron Howard
Com Chris Hemsworth, Benjamin Walker, Cillian Murphy, Brendan Gleeson, Ben Whishaw, Tom Holland, Frank Dillane, Joseph Mawle, Michelle Fairley, Jord Mollá
Distribuição: Warner
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No tempo em que Russell Crowe só me dava alegria (e vai longe esse tempo), ele personificou uma figura literária magnífica: o capitão Jack Aubrey da série de vinte livros criada pelo escritor Patrick O’Brian. O filme do australiano Peter Weir é uma maravilha, e eu torci durante anos, em vão, por uma continuação. Como ela não veio, veja aqui uma reprise da resenha de Mestre dos Mares – O Lado Mais Distante do Mundo.
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