Ninguém Deseja a Noite
Um belo filme – que Juliette Binoche tiraniza com uma atuação pesada e intrusiva

O explorador americano Robert Peary (1856-1920) ficou célebre por suas várias tentativas de atingir o pólo Norte entre o final do século 19 e o início do século 20. Tão célebre quanto ele à época foi sua mulher, Josephine, que compartilhava com o marido a paixão pelo Ártico: participou de várias das expedições dele e, numa delas, virou sensação mundial ao dar à luz uma filha, Marie, em um acampamento precário no gelo – os dois livros que Josephine escreveu sobre suas experiências, O Bebê da Neve e Diários do Ártico, foram imensos sucessos editoriais. Desde então, porém, a fama de Robert Peary diminuiu um bocado: os avanços na documentação geográfica terminaram por provar que ele nunca atingira de fato o pólo, como acreditava ter feito. E Josephine virou uma nota de rodapé da história. Tirá-la do esquecimento é só uma das missões que a diretora catalã Isabel Coixet se propõe em Ninguém Deseja a Noite; a outra missão, mais ambiciosa, é articular um comentário sobre o choque entre a independência inata de Josephine e as convenções sociais em que ela foi criada e nas quais acreditava com convicção – a começar pelo seu sentimento de superioridade sobre os nativos inuits.
A diretora mexe com as datas reais para melhor lidar com seu tema: transfere para a última aventura de Peary, em 1908, um evento que se passara anos antes – a saia-justa que o casal de exploradores enfrentou quando, numa das expedições, Josephine (Juliette Binoche) se deu conta de que Allaka (Rinko Kikuchi), uma das inuits do grupo, estava grávida de seu marido. No filme, Robert Peary está em algum ponto próximo ao pólo, sem dar notícias há meses, e Josephine está enlouquecida pela determinação de estar junto dele quando ele finalmente plantar no pólo a bandeira americana que ela costurou e bordou com as próprias mãos; está decidido que esta será a última expedição dele. “Enlouquecida” não é força de expressão. Josephine parece mesmo uma doida andando para lá e para cá na povoação rústica da Ilha Ellesmere com suas golas rendadas e vestidos longos de veludo, o cabelo embirotado no alto da cabeça, como quem vai à ópera e não a um deserto de gelo.
Na primeira cena, arma-se um circo para Josephine matar um urso polar, e ela comemora como quem estivesse numa caça à raposa. Na cabeça dela, de certa forma, é isso mesmo que se passa. Josephine trata todos como serviçais, dos inuits ao guia interpretado por Gabriel Byrne, amigo de longa data de seu marido. E por isso, embora já seja setembro e o inverno ártico esteja perigosamente próximo, ela pressiona, chantageia, manda e ordena: vão todos sair rumo ao acampamento avançado de Peary. A empreitada, desastrosa, custa várias vidas; Josephine acha que as perdas se justificam, e que os que morreram devem ter partido felizes por estarem colaborando com a façanha histórica de seu marido. E, quando todos os sobreviventes decidem retornar a Ellesmere antes que seja tarde demais, ela resolve ficar e enfrentar o inverno sozinho na cabana perdida no meio do nada.
Exceto pelo fato de que não está sozinha: a jovem Allaka, de quem ela nada sabe, ficou também, em um iglu ao lado da cabana. Josephine despreza Allaka. Considera-a uma selvagem, suja e sem modos. Se Allaka deixa comida à porta dela, ela dá a comida aos cães, por achá-la repugnante. Detesta os sorrisos constantes de Allaka, e não quer nem pegar nas botas de pele que a inuit faz para ela; Josephine continua a se vestir como se estivesse no inverno de Nova York. Mas esse balanço, é claro, terá de se alterar. Josephine não tem preparo prático nem emocional para enfrentar a solidão e a privação do inverno. E Allaka, que não tem nenhum conceito de propriedade particular ou espaço pessoal, aos poucos se dá conta de que está infringindo alguma fronteira crucial para Josephine, e delicadamente tentará contorná-la.
Gosto muito de alguns trabalhos de Isabel Coixet, em especial de Minha Vida Sem Mim e de A Vida Secreta das Palavras. Este Ninguém Deseja a Noite fica a um fiozinho de cabelo de integrar esse conjunto – e não entra nele em grande parte por culpa de Juliette Binoche. Adoro Binoche, mas desta vez ela tiraniza o filme com um desempenho pesado, intrusivo e excessivo. O equilíbrio que Isabel Coixet pretendia entre as duas linhas análogas do enredo – embate com a natureza e confronto humano – desmorona: as cenas em que Josephine aparece minúscula no meio daquela paisagem imensa, enlevada com a beleza extrema da natureza ártica (aliás, belissimamente fotografada por Jean-Claude Larrieu), sugerem que existe em Josephine uma paixão verdadeira. Mas Binoche nunca consegue trazê-la à tona nem transformar a impressão inicial que se tem da personagem – sua prepotância, sua teimosia, sua cegueira. Com muito menos atenção por parte do roteiro, Rinko Kikuchi faz muito mais. Pureza e suavidade não são qualidades fáceis de expressar com a devida autenticidade e complexidade. Mas Rinko (cujo dom para a modulação minimalista você já viu em Babel, Círculo de Fogo, Norwegian Wood etc. etc.) constrói Allaka cena a cena, detalhe por detalhe, até torná-la o coração imprevisto do filme. No final, eu já estava por aqui de Josephine, e ela que fosse às favas. De Allaka, porém, estou sentindo falta até agora.
Trailer
NINGUÉM DESEJA A NOITE (Nadie Quiere la Noche) Espanha/França/Bulgária, 2015 Direção: Isabel Coixet Com Juliette Binoche, Rinko Kikuchi, Gabriel Byrne Distribuição: Mares Filmes |