Negação
O negador do Holocausto que se fez de vítima – e como a razão pura, sem emoção, o derrotou
Parece ser uma suspensão de toda a lógica: em 1996, a muito respeitada historiadora americana Deborah Lipstadt, uma das consultoras na formação do espetacular Museu do Holocausto em Washington, foi notificada de que estava sendo processada por difamação pelo historiador autodidata inglês David Irving. E qual seria a difamação? David Irving é um desses sujeitos que, para defender Hitler e a Alemanha nazista, se dedicam a “provar” que o extermínio de judeus nunca ocorreu – não havia câmaras de gás em Auschwitz-Birkenau, não se envenenaram milhões de pessoas com Zyklon-B, não havia crematórios para incineração em massa dos cadáveres etc.; e qualquer eventual abuso teria ocorrido sem a autorização nem o conhecimento de Hitler. Mas Irving argumentava que, ao caracterizá-lo como negador do Holocausto em um de seus livros, Lipstadt estava minando sua credibilidade e roubando-o de oportunidades profissionais. O tribunal acolheu o processo. E não foi por acaso que Irving procurou as cortes inglesas, e não as americanas. Na lei inglesa, em casos de possível difamação não há presunção de inocência. Ou seja, não é o acusador que tem de provar a culpa do réu; é o réu que tem de provar que não mentiu e é, portanto, inocente. A sua primeira reação talvez seja, ora, tranquilo – não deve ser difícil provar por a + b que o Holocausto ocorreu, certo? Mas o excelente Negação, em que o dramaturgo David Hare e o diretor Mick Jackson recuperam todo o caso, da abertura do processo até o veredito, mostra que a tarefa do time de defesa de Deborah Lipstadt era infinitamente mais complexa do que poderia parecer.
Lipstadt (a inglesa Rachel Weisz, brigando com o sotaque americano do Queens e, por extensão, com o papel) quase teve um infarto quando seu advogado inglês, Anthony Julius (o brilhante Andrew Scott, que faz o vilão Moriarty no Sherlock com Benedict Cumberbatch), a avisou de que nem a deixaria depor no julgamento, nem chamaria qualquer sobrevivente dos campos de concentração para testemunhar. E quase teve um outro quase-infarto quando o advogado encarregado de litigar, Richard Rampton (Tom Wilkinson, igualmente brilhante), apoiou e reforçou a decisão. Julius e Rampton queriam, primeiro, tirar de Irving (Timothy Spall) as oportunidades que os testemunhos lhe dariam de fazer palanque, já que ele decidira agir como seu próprio advogado. E, segundo, com uma agudeza de raciocínio admirável nessas circunstâncias tão carregadas, eles queriam fazer uma argumentação cem por cento forense: fornecer provas físicas irrefutáveis, independentes de qualquer relato ou testemunho, da ocorrência do Holocausto – e então provar que Irving ocultara seu conhecimento dessas provas físicas para propagar a falsidade de que o Holocausto não ocorrera.
Vai contra toda a intuição, e por isso mesmo é fabuloso: o caso Irving-Lipstadt demonstra que mesmo a pesquisa histórica feita com rigor e seriedade, como a de Deborah Lipstadt, contém uma camada emotiva – e é partir dela que se operam distorções como a de David Irving, ele próprio movido por questões íntimas (um imenso sentimento de inferioridade de classe, no seu caso). O que os advogados de Lipstadt fizeram, de forma notável, foi remover do tema do julgamento toda coloração emotiva e transformá-lo numa demonstração incontestável da veracidade da política da “Solução Final” e da ocorrência do extermínio. Outra coisa notável? O veredito do juiz Charles Gray (o ótimo Alex Jennings, de A Senhora da Van) ao mesmo tempo encerra esse assunto e preserva integralmente o direito à liberdade de expressão.
O mais bonito disso tudo é que Julius e em particular Rampton montaram essa brilhante peça de lógica e razão movidos exatamente pelo sentimento que Lipstadt julgava que eles estavam descartando – um sentimento de humanidade e de justiça. É maravilhosa a sequência em que Rampton vai a Auschwitz e horroriza Lipstadt ao questionar toda e qualquer informação fornecida pelo historiador polonês que os guia (interpretado por mais um ator sensacional de Sherlock, Mark Gatiss, que é também o roteirista da série). No decorrer do julgamento, Lipstadt vai entender as razões de Rampton para a suposta frieza da sua conduta em Auschwitz – mas o desalento que ela sente naquela hora, naquele lugar horrível, e que o espectador experimenta também, é das coisas mais reais que já vi em um filme.
Trailer
NEGAÇÃO (Denial) Inglaterra/Estados Unidos, 2016 Direção: Mick Jackson Com Rachel Weisz, Tom Wilkinson, Timothy Spall, Andrew Scott, Alex Jennings, Mark Gatiss, Caren Pistorius, Harriet Walter Distribuição: Sony Pictures |