Narcos – A Segunda Temporada
Por que Limón, o escudeiro de Escobar, é o melhor personagem desta leva

ATENÇÃO: TEXTO COM MUITOS SPOILERS

Limón aparece já no primeiro episódio, mas entra bem aos poucos na história, como um personagem circunstancial. Pablo Escobar (Wagner Moura), foragido da sua prisão de luxo, voltou à sua cidade-base de Medellín (nada mais esperto do que fazer a última coisa que esperam que você faça) e precisa se deslocar sem ser detectado. La Quica (Diego Cataño), o seu sicário – ou assassino profissional – favorito, bola uma saída engenhosa: contrata o táxi de seu conhecido Limón, que faz ponto em frente a um bordel de Medellín e não tem ficha na polícia. Limón vai circular com o táxi, como um motorista qualquer, levando Escobar escondido no porta-malas. Limón desde o início se mostra cheio de iniciativa, e melhora o plano de La Quica: põe sua amiga de infância Maritza (Martina García), que trabalha no mercado logo ali em frente e é moça de respeito, para andar no banco de trás, se fazendo de passageira. Aí é que ninguém vai notar nada de estranho mesmo. A caracterização de Limón já é excelente. Ele tem o pior mullet (aquele corte de cabelo tipo Chitãozinho e Xororó anos 90) que já se viu, usa calças apertadas, fala com um sotaque bem campesino. É fácil subestimá-lo. E é um engano fazê-lo. Leynar Gomez, o ator que o interpreta, é magistral – desde o início, pressente-se o misto de medo e excitação de Limón diante de Escobar, e também sua reverência; sua mãezinha, diz ele, mora numa casinha construída pelo narcotraficante em um bairro que ele ergueu para os pobres de Medellín. (E só vou acreditar em diversidade em premiações como o Emmy no dia em que um latino desconhecido e sem glamour como Leynar Gomes ganhar uma indicação.)

Limón, em suma, é um representante-padrão do “eleitorado” de Escobar: é um cidadão desassistido de um país pobre e conflagrado, que sobrevive da sua capacidade de se virar e da ocasional generosidade de estranhos – e se esses estranhos são facínoras corruptos, violentos e oportunistas, que tiram um trocado do bolso bilionário para comprar o favor da população desprivilegiada e tê-la sempre pronta a defendê-lo, ora, fazer o quê, pelo menos Escobar pensou nele e na sua mãezinha, que é bem mais do que se pode dizer dos governantes. Não ocorre a Limón que, na eventualidade (ainda que remota) de haver alguma boa vontade por parte do Estado de fazer seu trabalho, Escobar não o está ajudando em nada, e atrapalhando muito, com sua capacidade ilimitada de corromper, destruir, desestabilizar, desordenar. Limón tem o traquejo da rua mas, no fundo, é um inocente e uma presa fácil, que Escobar captura com alguns elogios e agradecimentos, e outros tantos tapinhas nas costas. A certa altura, quando La Quica o faz participar de uma chacina no bordel, Limón parece ficar tão chocado que pensei – e os roteiristas querem que você pense isso – que ele iria recuar enquanto ainda era tempo. Errado: o que Narcos quer deixar muito claro é que pessoas como Escobar corrompem absolutamente. Não é possível se aproximar delas e limitar o estrago. Ele é completo.

Em uma matéria muito detalhada que li no UOL há alguns dias, fiquei sabendo que Narcos fez vários rearranjos factuais: La Quica não estava mais na Colômbia nessa altura, Limón já trabalhava havia algum tempo para o irmão de Pablo Escobar etc. etc. Não importa em nada: Narcos não se pretende um registro documental, e ao início de cada episódio avisa que várias liberdades foram tomadas. Mas a série toma essas liberdades por excelentes razões dramatúrgicas e também de conteúdo. O personagem de Limón, por exemplo, cresce muito nesta segunda temporada de Narcos, até se tornar um dos eixos centrais dela: ele é leal, pensa rápido e pensa sempre. É de uma inteligência cintilante; quantas coisas ele poderia ser se seu mundo fosse melhor. Mas o mundo de Limón é ruim. E suas escolhas, orientadas por essa visão distorcida, serão péssimas. Assim que Maritza percebe por que motivo foi colocada no banco de trás do táxi, ela diz a Limón: “Você acabou com a minha vida” – e está coberta de razão; acabou mesmo. Maritza veio do mesmo lugar que Limón, e cresceu junto com ele. Mas não sofre da carência abissal do amigo, que o leva a adotar Escobar, imediatamente, como figura paterna. E também não sofre da necessidade de Limón de se provar, de demonstrar que pode ser alguém. Sem nada que tolha o seu olhar, ela vê onde essa história toda vai dar, e sabe que não é em um lugar agradável. Mas Limón é um fruto que está pronto para ser apanhado, e Escobar, um arguto juiz do caráter alheio, percebe isso na hora.

Narcos fala com muita especificidade e riqueza de detalhes de Escobar, do crescimento do mercado da droga, e da conflagração vivida pela Colômbia. Mas sempre tive a impressão de que José Padilha (que nesta segunda temporada exerce só o papel de produtor, não mais de diretor) quis falar de todas essas coisas para que se pense não só nelas, mas nas suas correlações com outras situações latino-americanas que seguem o mesmo padrão. A megalomania de Escobar, e a insolência com que ele se acha um cara legal e sempre um injustiçado – além de, pasme-se, o sujeito de que a Colômbia precisa –, soam muito familiares. Entre as centenas ou milhares de pessoas que Escobar matou ou mandou matar, estão os passageiros de um jato da Avianca que ele derrubou na primeira temporada, e as dezenas de inocentes apanhados por outra bomba sua em Bogotá, nesta segunda temporada. E, no entanto, finalmente perseguido com determinação pelo presidente César Gavíria (Raúl Mendéz), não há episódio em que ele não clame, indignado, que “não há justiça neste país”.

A calamidade social é como um terreno fértil, porém abandonado: se não se cultiva nele algo de útil, outras coisas vão brotar de qualquer jeito. Vão brotar populistas como Escobar e seguidores equivocados como Limón. Vão brotar tipos aberrantes como os irmãos Carlos e Fidel Castaño (Mauricio Mejía e Gustavo Angarita), que chefiam um pavoroso esquadrão da morte, e narcotraficantes que aprendem com os erros de Escobar para se sofisticar, como o ascendente Cartel de Cali, que tomará o lugar antes ocupado pelo Cartel de Medellín. Sufocada por tanta erva daninha, gente que ia bem vai passar a crescer torta – como o coronel Carrillo (Maurice Compte), que volta da Espanha completamente enlouquecido para de novo chefiar a força de busca a Escobar, e como o agente da DEA Javier Peña (o extraordinário Pedro Pascal), que faz alguns acordos muito duvidosos na tentativa de capturar o traficante – e que termina esta temporada despontando como o protagonista natural da próxima (a Netflix já confirmou a terceira e a quarta temporadas).

Javier Peña é um personagem interessantíssimo. Maritza, uma personagem excelente. A certa altura, vai-se conhecer o pai de Escobar, e ele é um personagem amargo, porque permite vislumbrar um Escobar que poderia ter sido, mas não foi. Tata (Paulina Gaitan) e Dona Hermilda (Paulina García), a mulher e a mãe de Escobar, são personagens assustadoras: não há nada que elas não saibam de Pablo, e não há nada de hediondo nele que elas não apóiem, encorajem, premiem e enalteçam. Todo rei precisa de uma corte, por menos principesca que ela pareça. E, se os sicários de Escobar são seus ministros, Tata e Hermilda são as conselheiras, que sussurram no seu ouvido e cultivam sua loucura, porque adoram o privilégio que ela lhes confere, e se envaidecem do monstro que são capazes de alimentar. Todos esses personagens, de certa forma, servem como refrações de Pablo Escobar. Mas nenhum é tão completo e complexo quanto Limón, o único que vai estar ao lado de Pablo no fim, e que vai de bom grado dar a vida por ele: em Limón, tem-se a tragédia inteira do tudo que se perde para nada se ganhar.