
A morte, a miséria, e a desgraça são horríveis. Então ria delas.
Estão sendo relançadas aqui em DVD, depois de um bom tempo esquecidas, duas das muitas obras-primas que o italiano Mario Monicelli fez durante sua carreira longuíssima: Meus Caros Amigos 1 & 2. (Bem, estão lançando também Meus Caros Amigos 3, mas esse não conta porque não foi Monicelli que o dirigiu.)
A carreira de Monicelli começou muito antes da minha (muito antes da minha vida, aliás), então nunca tive oportunidade de resenhar um filme dele no lançamento. Mas vi boa parte do trabalho dele em cineclubes, sessões da meia-noite, retrospectivas e em VHS.
Chegando aos cinemas de fato, peguei só o bárbaro Parente É Serpente, de 1992 (nunca, jamais, deixe alguém contar o final para você). E tive a chance de homenageá-lo na ocasião da morte dele, há cinco anos quase exatos. Não vou nem tentar fingir modéstia, porque sabe que é um texto bem legal mesmo?
De brinde, no final, tem um link para uma das várias cenas de Meus Caros Amigos 1 & 2 em que o Ugo Tognazzi, para enrolar alguém, fala muito rápido um texto que não tem pé nem cabeça mas é genial – sempre uma variação de “la supercazzola prematurata c’o scappellamento a destra e la tarapia tapioca incorporata”. Tem legendas em italiano mesmo no botão CC (closed caption).
O mestre da comédia humana
O diretor Mario Monicelli foi um gênio do humor – e mais genial ainda na maneira como usou o cômico para mostrar como somos trágicos.
É preciso ser um gênio para criar uma cena como aquela em que cinco amigos, todos respeitáveis (um médico, um nobre falido etc.) e já entrados na meia-idade, vão à estação ferroviária aguardar a partida do trem – e então, quando ele começa a andar, saem correndo ao lado dele e vão largando tapas na cara dos passageiros que, com a cabeça para fora da janela, acenam compenetrados para os parentes e amigos deixados na plataforma de embarque. É tão inesperada a traquinagem do bando, mas também tão naturalmente propiciada pela situação, que, enquanto gargalha, o espectador se admira: como ninguém pensou nisso antes? Um dos grandes sucessos do diretor italiano Mario Monicelli nos cinemas brasileiros, Meus Caros Amigos, de 1975 (o filme, aliás, já se chamou também Quinteto Irreverente), é um estudo – e desconstrução – dos padrões cotidianos de comportamento em forma de comédia. Veja-se, por exemplo, outra cena antológica, esta da continuação de 1982: visitando o túmulo de um dos companheiros no cemitério, os quatro amigos remanescentes observam um jovem viúvo chorando ao pé do jazigo de sua mulher. Um deles não perde a chance. Aproxima-se do sujeito e fala da morta como se a conhecesse – intimamente. “Ela amava você. Comigo, era só sexo”, conclui ele para o viúvo, que, de inconsolável, passou já a furioso. E não há como negar que, ao fazê-lo xingar a mulher de vagabunda para baixo e encher sua lápide de pontapés, os amigos se divertiram, e à plateia, à beça – mas prestaram também um serviço ao viúvo: a libertação do luto pela raiva.

Era isso que tornava Monicelli verdadeiramente genial. Não apenas o olhar aguçado para as oportunidades cômicas que se apresentam nas situações mais prosaicas ou mais solenes do dia a dia, mas a percepção de que a comédia é a mais profunda das subversões: é a rebeldia contra o trágico, o pobre, o mesquinho, o desesperador – em suma, o ato definitivo de resistência. Resistência vã, talvez, mas nem por isso menos essencial. Esse sabor amargo que seus roteiros deixavam na memória marcou também a morte de Mario Monicelli. Na segunda-feira 29 de novembro, sob tratamento para um câncer de próstata, o cineasta atirou-se do 5º andar do hospital San Giovanni, em Roma, aos 95 anos.

Entre sua estreia, em 1935, e o encerramento de sua carreira, há cerca de uma década (nos últimos anos, fizera apenas alguns documentários e escrevera uns poucos roteiros), Monicelli fez mais de sessenta filmes – praticamente só comédias. O correto, aliás, seria dispensar o advérbio “praticamente” dessa frase: o humor, disse o cineasta numa entrevista concedida em 1999, é a única forma de fato eficaz de crítica: quem ri da doença, da miséria, da velhice e da morte ri do pior que pode acontecer ao ser humano, e portanto não conhece barreiras. O diretor realmente não as conhecia. Fez comédia (hilariante, sempre) com a vida imunda e esquálida da Idade Média, em O Incrível Exército Brancaleone, de 1965. Fez comédia (durante o início do filme, pelo menos) com o drama terrível de um pai que perde o filho em um assalto e empreende uma caça aos culpados, em Un Borghese Piccolo Piccolo, de 1977. Fez comédia com os ódios horríveis que às vezes correm dentro de uma família (no muito engraçado e totalmente aterrador Parente É Serpente, de 1992). E, num de seus filmes mais célebres, Os Eternos Desconhecidos, de 1958, fez a Itália rir de algo que, naquele momento, não parecia ter a menor graça, e que inclusive rendera muitas lágrimas na década anterior, a da explosão dos dramas neorrealistas como Ladrões de Bicicleta.

A história de Os Eternos Desconhecidos trata de um bando de sujeitos broncos e pés de chinelo que decidem abrir um buraco numa parede que os levará a uma loja de penhores e a um roubo espetacular – mas é o pretexto para Monicelli esmiuçar, enquanto encena uma série de trapalhadas saborosíssimas, a miséria em que ainda viviam legiões de italianos nas décadas seguintes à II Guerra, e o despreparo que os mantinha à margem de um mundo que eles não conseguiam entender nem acompanhar. Monicelli fez rir de tudo o que é sério e penoso, enfim – e, passada aquela sensação de semiesgotamento fisiológico que acompanha uma sessão prolongada de risadas despudoradas, fez cada espectador entender que a precariedade e a inadequação não afligem este ou aquele ser humano; são uma desgraça democraticamente distribuída entre a espécie e é preciso suportá-la como possível. De preferência, fazendo troça dela.
Nas dezenas de grandes filmes que escreveu e dirigiu, Monicelli praticou também ele uma espécie de democracia. Muitos bons atores (e grandes atores) italianos em atividade nessas décadas tiveram a oportunidade de explorar seus limites cômicos e dramáticos (na obra de Monicelli, eles são a mesma coisa) sob sua orientação: o comediante Totò, Ugo Tognazzi, Vittorio Gassman, Alberto Sordi, Adolfo Celi, Marcello Mastroianni, o francês Philippe Noiret – todos trabalharam com o diretor, e repetiram a experiência sempre que possível. Outros são menos ilustres, mas Monicelli os fez também grandes: um pedreiro aqui, um servente ali, um lavador de pratos acolá – o cineasta recrutava atores entre a gente comum com um tino inequívoco para as figuras que melhor poderiam contribuir para o gênero que ele ajudou a constituir, a commedia all’italiana. Ou, simplesmente, a comédia humana.