Sorte do ator que, um dia, topa com um papel como o de Lee Chandler, o trágico protagonista de Manchester à Beira-Mar: não é para todo mundo que uma oportunidade dessas surge – e em geral, quando ela surge, é uma vez na vida. Mas o que Casey Affleck, o irmão mais novo de Ben Affleck, faz desse personagem não tem nada a ver com sorte, e tudo a ver com trabalho: o seu é um desempenho cheio de movimento, em mil tons de cinza, para compor um homem que um luto terrível paralisou por fora e ossificou por dentro. Talento, também, não é o que basta para entregar uma atuação como esta. É preciso uma disposição extraordinária para visitar alguns cantos muito escuros da alma e compreender a natureza da perda e da culpa – e, ainda assim, achar momentos inesperados de humor no meio disso tudo. Casey é um tipo raro de ator: quanto mais difícil o papel, mais ele responde ao desafio e mais longe chega. Tire a prova assistindo a, por exemplo, O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford. Brad Pitt faz o lendário fora-da-lei Jesse James. Casey faz o covarde Ford do título, e alcança o que é, na minha opinião, a mais excepcional caracterização de um homem vazio por dentro. Ou seja: Manchester é deprê? É, sim. Mas é um belo filme, apoiado em uma interpretação belíssima, que seria um crime perder.
Leia a seguir a resenha completa:
Nó na Garganta
Em Manchester à Beira-Mar, Casey Affleck tem um desempenho devastador como um homem que está se afogando em luto mas recusa qualquer tábua de salvação
A meia distância, vê-se Lee Chandler (Casey Affleck), na traseira aberta de um barco de pesca, tentando assustar seu sobrinho com histórias de tubarões, enquanto o pai do menino, dando risada, pilota a embarcação. É uma vinheta de intimidade familiar: a facilidade da convivência entre os irmãos adultos, a brincadeira do tio com o garoto que sabe que tubarão nenhum vai pegá-lo, a comunhão dos três em torno do mar gelado de Massachusetts. Na sequência seguinte, Lee aparece como outra pessoa, em outro mundo. Ele remove a neve acumulada à porta de um edifício, troca a lâmpada de um inquilino, conserta a torneira de outro, desentope um vaso sanitário, tira mais neve – sempre entreouvindo as conversas que se desenrolam alheias à sua presença. Em uma ocasião, sem alterar o volume da voz, ele perde a paciência com uma raiva que aflora com força espantosa; no desempenho estupendo de Casey Affleck (merecidamente favorito na disputa do Oscar), pressente-se que Lee tem dentro de si uma lava espessa, convulsiva, que ele doma por meio do mutismo, mas que a qualquer agitação ultrapassa esse gargalo. A monotonia massacrante e a forma como ele se abstrai do seu entorno – ele está lá, mas não está – compõem uma mise-en-scène de simplicidade exemplar: em Manchester à Beira-Mar, algum abismo separa o primeiro Lee deste que se vê agora.
Lee é um personagem de dificuldade extraordinária para um intérprete: um homem com os pulmões cheios de luto, mas para quem suportar esse sufocamento é a razão pela qual deve continuar vivo. Ao mesmo tempo, Lee e também o filme têm lampejos de um humor fulgurante. Avisado da morte iminente de Joe (Kyle Chandler), seu irmão mais velho, Lee corre para o hospital da cidade costeira de Manchester, mas descobre que chegou tarde demais: o irmão já se foi. O médico, a enfermeira e um amigo murmuram as frases de praxe. Lee ouve sem olhar para eles. Diz um palavrão. O trio prende a respiração durante o longo silêncio que se segue – e então exala, com comicidade inesperada, quando Lee, em vez de prosseguir na explosão, pede desculpas pelo destempero. Não é por a vida ser trágica que ela não é também engraçada e incongruente, é não é por as pessoas estarem em sofrimento que o absurdo ou o ridículo passam despercebidos a elas. E Manchester à Beira-Mar é tão trágico e repleto de sofrimento que seria fácil ao filme deslizar para o miserabilismo. Na direção circunspecta mas vívida de Kenneth Lonergan, porém, a tristeza tem inúmeras texturas e muitos afluentes. Está em mudança constante, sempre empurrando o mundo à frente.
Da morte, Joe quer trazer Lee de volta a essa correnteza. Seu testamento estipula que Lee vai ser o guardião legal do sobrinho, Patrick (Lucas Hedges), agora um rapaz de 16 anos. Patrick tem escola, namoradas (duas), uma banda de rock, treino de hóquei, amigos e casa em Manchester. O que se espera é que o tio retorne para criar o sobrinho na cidade. Mas é contra essa expectativa que Lee luta durante todo o tempo, inamovível, apesar dos apelos ou desaforos com que o sobrinho tenta dobrá-lo (os Chandler são todos duros na queda e unidos, mas não muito polidos). Aos poucos, Lonergan vai construindo a ponte entre o Lee de antes e o de agora até revelar, em uma cena dilacerante, qual foi o ponto de inflexão.
A maneira como Affleck atravessa essa saga é um deslumbre – mais ainda por ser tão inarticulada. Já ficou célebre a cena em que ele revê a ex-mulher, interpretada por Michelle Williams, e trava com ela um diálogo truncado e doloridíssimo. Mas, entre tantas outras passagens em que Affleck confere eloquência a um personagem de feitio tão ineloquente, há uma em uma delegacia que é fustigante – uma dessas cenas que ficam na memória e voltam para assombrar . Não é a primeira grande atuação de Affleck. Ele já esteve superlativo também em Medo da Verdade, dirigido pelo irmão Ben Affleck, e em O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford. Mas é o papel que vai mudar o jogo para ele – e só por acaso a chance caiu em seu colo, com a desistência do amigo de infância Matt Damon. Desgraças terríveis às vezes mudam a vida de uma pessoa. Outras vezes, é o magnífico que acontece.
Isabela Boscov Publicado originalmente na revista VEJA no dia 18/01/2017 Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A © Abril Comunicações S.A., 2017 |
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MANCHESTER À BEIRA-MAR (Manchester by the Sea) Estados Unidos, 2016 Direção: Kenneth Lonergan Com Casey Affleck, Lucas Hedges, Kyle Chandler, Michelle Williams, C.J. Wilson, Gretchen Mol, Matthew Broderick Distribuição: Sony Pictures |