
Luke Cage, o herói de força descomunal e pele mais resistente que o aço, na qual balas de metralhadora causam tanto efeito quanto tic-tacs, não usa uniforme nem máscara. Não adiantaria: um homem negro de 1m90 metido numa briga de rua, ou enfrentando policiais, é o que de mais chamativo pode existir na paisagem social americana, e seria inútil tentar ocultar esse tipo de identidade. Luke pode ajudar, defender, proteger ou simplesmente tentar ficar quieto no seu canto – ele vai sempre ser um suspeito, não importa quantas provas surjam em seu favor. No bairro negro do Harlem, Luke vai pouco a pouco virando herói popular; no Harlem há sempre muita gente na rua e de olho na rua, o suficiente para testemunhar uma versão sobre as atividades dele que difere em muito daquela propagada pelas autoridades ou pelos inimigos oportunistas dele. Mas a aprovação pública a Luke também pesa contra ele: a polícia e as ruas ocupam ali trincheiras opostas. Se a rua gosta dele, as suspeitas só se reforçam.
Essa inquietação e esse desassossego, e essa divisão social, estão à frente e no centro de tudo que se passa nos treze episódios da primeira temporada de Luke Cage. E só por isso a terceira série coproduzida pela Marvel e pela Netflix já merece que se preste muito mais atenção a ela do que se prestou desde sua estreia: no ano do “black lives matter”, duas potências do entretenimento investiram num programa que é orgulho negro da primeira à última cena – e ele passou meio despercebido.
Por que se falou tão menos de Luke Cage do que de Demolidor e Jessica Jones?
Não vou aderir à explicação fácil, preguiçosa e possivelmente equivocada de que o público não quer ver uma atração com elenco 99% negro (Empire, por exemplo, também tem elenco 99% negro e foi um sucesso) – e, vale notar, equipe técnica e criativa majoritariamente negra também. O primeiro obstáculo ao sucesso de Luke Cage é que, ao contrário de Demolidor e Jessica Jones, a série não começa redonda. Lá pelo quinto ou sexto episódio ela encontra o seu compasso, e o ótimo Mike Colter afinal para de se estranhar com o protagonismo e se afina com o personagem.
Mas é fato que a série exagera na exposição nos episódios iniciais; demora a engrenar; tende a ser repetitiva; e às vezes dá umas mancadas indesculpáveis. Tem vilão que, antes de executar um inocente, conta para ele a história de sua vida inteirinha. Inteirinha mesmo, começando da infância. Tem uma cena de experimento científico que fica a um milímetro de cair no ridículo total. Numa sequência de tumulto com bombas e reféns num nightclub do Harlem, com policiais e a SWAT fervendo à volta do lugar, dá para uma Escalade preta do tamanho de uma jamanta entrar no meio da cena do crime e resgatar um personagem sem que nem um patrulheiro sequer faça alguma objeção. Jura?
O fator “blaxploitation”
Segundo problema – e esse é um “problema” que tem de ir entre aspas: Luke Cage faz desde o início uma opção deliberada pelo tom, o clima e a estética da blaxploitation, os filmes policiais negros americanos da década de 70. O primeiro filme com o detetive Shaft vivido por Richard Roundtree saiu em 1971. Luke Cage, o personagem, foi lançado nos quadrinhos em 1972; é herdeiro direto da blaxploitation, e tributo a ela. Mas, com o tempo, a blaxploitation foi virando curiosidade para iniciados. É um gosto que a maior parte da plateia atual não teve oportunidade de adquirir. No começo tudo parece estilizado e posado demais, e demora um pouquinho até o espectador entrar na onda.
Dito isso, Luke Cage faz um trabalho de atualização da blaxploitation que é, na minha opinião, fabuloso: decalca a era do movimento pelos direitos civis e do jazz movido a heroína diretamente sobre o universo do rap e do hip-hop, dos pontos de venda de drogas nas esquinas, dos empresários e políticos negros com um pé no populismo e outro pé no crime. Mariah Dillard, a vereadora cavilosa vivida por Alfre Woodard, usa esse tipo de poder como se ele fosse um direito adquirido por desagravo histórico. Seu primo Cornell Stokes, mais conhecido como Cottonmouth, o vilão dos primeiros episódios, não resolveu tão bem a equação: o sensacional Mahershala Ali (de House of Cards) o interpreta com um misto de desafio e apreensão racial que chega a ser tocante. O problema de Cottonmouth é que um dia ele vislumbrou um outro futuro, muito melhor e longe disso tudo, na música.
E a música!

O cenário central de Luke Cage é o Harlem Paradise, o nightclub que Mariah e Cottonmouth herdaram de sua avó. Cottonmouth tem um orgulho todo especial dos músicos que se apresentam ali. O que significa que em quase todo episódio há um número mostrado inteiro no palco do Paradise, com artistas absolutamente sensacionais escolhidos a dedo – não só pela sua excelência, mas pelo que eles representam para a cena negra americana hoje. Procure no YouTube o artista que se apresenta no quinto episódio e que me deixou sem chão e me tirou do sério: Jidenna, com Long Live the Chief.

Aliás, todos os episódios têm nomes de músicas do Gangstarr, uma dupla de rap da Costa Leste. O rapper Method Man, do Wu-Tang Clan, tem uma participação deliciosa no episódio 12. A artista que se apresenta no episódio 2, Faith Evans, é a viúva de Biggie Smalls, ou Notorious B.I.G., o ícone do rap da Costa Leste abatido a tiros em Los Angeles em 1997, no auge da rixa entre os rappers das costas Leste e Oeste – e é o célebre retrato de B.I.G. com uma coroa, feito pelo fotógrafo Barron Claiborne, que enfeita o escritório de Cottonmouth.
Outro que faz uma aparição especial: Dapper Dan (em tradução livre, seria “Dan Janota”), o guru/estilista/alfaiate/visionário que entre os anos 80 e 90 bolou o jeito de se vestir extravagante dos “playas” e “big cats” do Harlem. Bobby Fish (o maravilhoso Ron Cephas Jones), o eterno jogador de xadrez da barbearia em que Luke trabalha, acha que Luke precisa se vestir com mais respeito para uma ocasião solene, e chama Dapper Dan para dar um jeito nele. O terno fica uma beleza – até ser furado de balas dois quarteirões depois, o destino de todas as roupas de Luke.
Just chillin’
Luke Cage tem muitas sacadas bacanas, mas em geral é bom mesmo, de verdade, quando está na barbearia, na delegacia, nos diners, nas ruas, com os personagens só jogando conversa fora e dando um tempo. É quando as cores do Harlem, do linguajar, das tiradas, do senso de humor ficam mais vivas. Nota máxima, aqui, para o showrunner Cheo Hodari Coker, que de rua e de “downtime” entende um bocado. Coker foi o roteirista do longa Notorious B.I.G. – Nenhum Sonho É Grande Demais, e depois supervisionou Southland (uma série maravilhosa que, se passou aqui, foi sem divulgação nenhuma), NCIS: Los Angeles, Almost Human e Ray Donovan – todas elas séries em que esse feeling para a rua e/ou a camaradagem são elementos primordiais.
O melhor vilão
Se formos contar todas as séries Marvel/Netflix, o Kilgrave vivido por David Tennant em Jessica Jones ganha disparado. Mas, entre os vilões de Luke Cage, para mim o melhor não é nem Cottonmouth, nem Mariah, nem muito menos o Diamondback de Erik LaRay Harvey: é o Shades de Theo Rossi. Para quem não viu Sons of Anarchy, Theo Rossi é novidade. Quem viu sabe que, ao fim e ao cabo, ele transformou o coadjuvante Juice no personagem mais rico da série. Em Luke Cage, Rossi é uma delícia: sorri muito, vive calmo, fresco e cool, e nem quando tira os óculos escuros e olha nos olhos dos outros dá para saber qual a jogada dele. O sujeito é liso mesmo. Outro ponto que trabalha em favor de Shades/Rossi é a etnia indefinida: não se sabe se ele é negro, hispânico, italiano ou qualquer combinação dessas ou de qualquer outra coisa, o que causa um bocado de ansiedade num meio em que identificar a que grupo se pertence é tão crucial.
A dupla de policiais
Misty Knight representa uma trincheira importante entre a população negra americana: a detetive observa as regras, é pela lei e pela ordem e acredita que trabalhar dentro do sistema e em prol do sistema é a melhor maneira de torná-lo mais justo. A atriz Simone Missick, porém, tem muito jogo de cintura (e também um ótimo modelo de comportamento em Pam Grier, a rainha do blaxploitation nos anos 70). Misty nunca soa caxias ou dogmática; soa convicta a respeito de algo que lhe custou muita reflexão. O parceiro – branco – dela, com quem ela tem uma amizade confortável, cheia de familiaridade, é um caso à parte: Frank Whaley é um excelente coadjuvante que está aí há décadas e tira ótimo partido da sua cara de criança birrenta. Os roteiristas adoram dar “easter eggs” para ele e brincar com seus papeis passados, como em Pulp Fiction e O Preço da Ambição, ou recentes, como em Ray Donovan.
Aquela palavra
Em Luke Cage, usa-se a toda hora “nigger”, a palavra-tabu por excelência do vocabulário americano hoje. A toda hora, mas não a torto e a direito: o showrunner Cheo Hodari Coker discutiu o assunto com a Marvel e a Netflix e ganhou a bênção para utilizá-la nos contextos em que ela seria dita normalmente e também como uma espécie de sinalizador sobre as atitudes diversas dos personagens no que diz respeito a raça. Ficou impecável.
Claire!
Fiquei muito jururu em Demolidor quando percebi que Matt Murdock não ia ficar com a mulher mais sensacional de todo o elenco, a enfermeira Claire Temple. Pois Luke é um sujeito mais esperto que Matt: bate o olho em Claire e não deixa passar. Rosario Dawson se estica e se espreguiça no papel, feliz como gata no sofá. Amei.