Lucy
Espirituoso e exuberante, Lucy confirma o faro de Luc Besson para escolher seus atores e anuncia a melhor fase de sua carreira

Em um plano bem fechado, Lucy leva uma conversa mole com Richard: pelos brincões e jaqueta de oncinha dela, e pela barbicha e chapéu de caubói dele, fica claro que nenhum dos dois está em seu lugar na Taipei que se vê ao fundo. Richard quer convencer Lucy a levar uma certa maleta a um certo Sr. Jang. Lucy faz onda, Richard joga um charme para cima dela. Lucy quase cede e daí recusa; Richard de repente se cansa do papo e algema a maleta ao pulso de Lucy. Agora a barra pesou. E, nessa interação tão breve mas tão bem filmada que abre Lucy, o francês Luc Besson mostra sem esforço aparente e com fluência sedutora algumas das razões pelas quais, a despeito de pontos baixos (entre os quais sobressai o equivocado Joana d’Arc de 1999), sua carreira dura já tanto tempo e se consolidou como uma significativa potência comercial do cinema europeu.

Primeiro, há os atores: Lucy cai como uma luva para Scarlett Johansson, que é uma estrela mas tem senso de humor e jogo de cintura suficientes para persuadir o espectador de que sua personagem é uma periguete que está em sabe-se lá qual parada em Taiwan – e para, no tempo que resta, metamorfosear-se em uma espécie de super-Lucy. No polo oposto do espectro está, no papel de Richard, o dinamarquês Pilou Asbaek, conhecido, se tanto, por quem viu produções escandinavas como o filme O Sequestro ou a série Borgen. Aí, nessa cena de abertura, termina a participação de Asbaek, mas ela é memorável: Besson foi sempre um olheiro fenomenal de atores (leia no final deste post a entrevista com ele), e em seus filmes é que despontaram para o público nomes como Natalie Portman, Jean Reno, Milla Jovovich, Jason Statham e, recentemente, até Liam Neeson em sua nova configuração como herói de ação.

Depois, há a intimidade de Besson com a câmera e sua certeza de aonde quer chegar. Lucy é uma bobagem, como a maioria dos filmes dirigidos ou produzidos pelo cineasta. Mas uma bobagem fluida, espirituosa, divertida, envolvente e encadeada de forma a atingir um nível de insanidade próximo ao do desabrido cinema sul-coreano. Vindo de outro grande acerto, A Família, com Robert De Niro e Michelle Pfeiffer, Besson parece estar agora, aos 55 anos, em sua melhor fase.

A pobre Lucy, com a maleta algemada ao pulso, será levada à presença do Sr. Jang (o grande Choi Min-sik, de Oldboy), um gângster nefário que lava as mãos sujas de sangue com água mineral, sobre o carpete do quarto, e implanta na cavidade abdominal da garota uma embalagem de meio quilo de uma droga nova e fortíssima. Tentando defender-se dos avanços amorosos de um capanga de Jang, Lucy leva um pontapé, a embalagem se rompe, e todo o meio quilo de droga entra no seu sistema. Efeito inesperado: a loira desmiolada tem sua capacidade cerebral pouco a pouco multiplicada pela substância, até transformar-se na mais letal de todas as loiras que já passaram pelo planeta. Quem explica as fases de sua metamorfose (sem saber que o está fazendo) é o professor Norman (Morgan Freeman), um eminente pesquisador que dá uma palestra em Paris. A uma plateia atenta, ele descreve as mudanças por que teoricamente passaria um ser humano que tivesse o uso de seu cérebro potencializado até o máximo. A alternância entre os pontos da teoria e sua ilustração prática não é um recurso novo, de fato. Mas Besson controla os tempos tão bem que, em vez de revelar seu desgaste, ele se torna excitante, brincalhão, quase inovador.

A cada vez mais poderosa Lucy é o alvo para o qual vão convergir o Sr. Jang – que obviamente quer reaver seu produto –, o professor Norman, um policial parisiense (outro excelente desconhecido, o egípcio Amr Waked) e todo um sortimento de tipos incomuns. Tão voluptuosa (e enxuta, com exíguos 89 minutos) é a narrativa de Lucy que, quanto mais absurda a situação, mais deliciosa também ela fica. O Besson maduro, produtor de pelo menos meia dúzia de filmes ao ano, finalmente começa a parecer agora uma versão decantada do Besson iniciante que fez fama com Subway, Nikita e O Profissional. Sua evolução, pelo jeito, pode estar apenas começando.
Isabela Boscov Publicado originalmente na revista VEJA no dia 27/08/2014 Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A © Abril Comunicações S.A., 2014 |
LUCY França, 2014 Direção: Luc Besson Com Scarlett Johansson, Morgan Freeman, Pilou Asbaek, Amir Waked, Choi Min-sik |
Entrevista com Luc Besson

“Sou um esforçado”
O diretor Luc Besson falou a VEJA sobre sua sorte crônica com os atores, o desejo “sincero” de melhorar sempre e a bronca dos franceses com o cinema comercial:
O ritmo e o encadeamento tão fluentes de Lucy mostram que aí há um diretor em absoluto conforto. É assim que o senhor se sente?
Sim – e já era hora! Sou um esforçado: desde o início da carreira tentei sempre, com maior ou menor êxito, aprender, melhorar, me aprimorar. Mas nos últimos anos tenho experimentado essa sensação de facilidade e fluidez. De alegria mesmo. Talvez seja o tempo. Um artista tem obrigação de viajar, conhecer, ver. É um conhecimento cumulativo do mundo e de si mesmo, acho eu.
Jean Reno, Natalie Portman, Milla Jovovich e Jason Statham tiveram todos sua chance decisiva por seu intermédio, como diretor ou produtor. Como saber que aquela é a pessoa certa sem ter jamais trabalhado com ela?
O talento sempre pertenceu a eles; não fui eu que o fiz ou descobri. Se tenho algum mérito é o de sacar a posição certa no campo em que eles deveriam jogar. Feitas as contas, a sorte de conhecê-los foi mais minha do que deles: um bom ator faz o sucesso de um filme. Inclusive os ainda não tão conhecidos, como, em Lucy, Amr Waked, Pilou Asbaek ou Choi Min-sik, que é muito famoso na Coreia. São atores com presença, senso de espetáculo. Conhecer gente, aliás, é um dos prazeres da vida. Quem se mantém humilde e aberto à criatividade dos outros só vai lucrar.
O senhor é sócio de uma das produtoras mais poderosas do continente, a EuropaCorp. Mas a crítica francesa adora dizer que o senhor representa tudo o que há de errado com o cinema. Isso o perturba?
Não muito. Sou quem sou, faço o que quero e me esforço sempre, com sinceridade, para melhorar. Não gosto das grosserias que ouço e leio, mas tento evitar que isso me afete em um nível pessoal. Veja, os franceses adoram pôr a culpa de tudo na força comercial do cinema americano, dizendo que ele estrangula a produção nacional. “Comercial”, aí, é usado como palavra feia, e é a crítica recorrente ao meu trabalho. Ora, um filme de Godard é tão comercial quanto qualquer outro. Para começar, o ingresso custa o mesmo. E o retorno não é dessemelhante: em termos bem simples, se ele faz um filme por 10 euros e arrecada 100, eu faço um filme por 100 euros e arrecado 1 000. E por que filmes intelectuais e filmes comerciais têm de se excluir? Uma das coisas mais maravilhosas da França é que, em qualquer dia da semana, você pode escolher entre duas centenas de filmes para ver – iranianos, franceses, americanos, coreanos e por aí vai.
Produções suas como 13º Distrito fazem sucesso junto à população imigrante, pouco atendida pelo cinema francês. Essa conexão foi deliberada ou casual?
A França deveria se orgulhar de sua população imigrante, do trabalho e da riqueza cultural com que ela contribui. Mas nós a tratamos incrivelmente mal, em todas as instâncias. É deplorável. Essa conexão foi só em parte acidental: gosto que meus filmes representem a vida francesa como ela é nas ruas. E isso significa que neles há gente de todas as origens e condições.
Por que Lucy se passa em Taiwan?
Eu queria jogar Lucy num lugar cuja língua ela não fala e onde ela fosse o proverbial peixe fora d’água. E vamos convir que os orientais, quando ficam doidos, é para valer. Lucy precisava desse tipo de loucura sem freios.