“House of Cards”: o fim melancólico de uma série que foi grande
Sexta e última temporada é ilógica, implausível e não raro constrangedora
Apenas seis anos atrás, House of Cards pôs a Netflix de um só golpe na dianteira do streaming, determinou uma mudança radical nas regras do jogo da TV e obrigou todo mundo a segui-las – ou definhar. Magistralmente escrita pelo criador Beau Willimon e produzida com olhar atento por David Fincher, a série foi, nos seus termos, tão revolucionária quanto Família Soprano o fora à sua época: proporcionou um olhar clínico, de humor desiludido e drama que chegava a queimar de tão frio, sobre as vísceras da política americana – e da ambição humana – ao seguir Frank Underwood (Kevin Spacey), um deputado do baixo clero que arma, conchava e conspira para se alçar à primeira divisão (não, não estou fazendo nenhuma alusão; é só uma sinopse mesmo). Até o comportamento do espectador House of Cards reformatou, ao pela primeira vez disponibilizar para ele todos os episódios de uma vez só e criar com velocidade assombrosa o hábito da maratona. Pois a House of Cards que se viu nesta sexta e última temporada não é nem sombra daquela: não passa de um arremedo patético do programa que Willimon criou, e de cuja equipe saiu ao final da quarta temporada.
Na temporada passada, a quinta, os sinais de que House of Cards entrara em estado terminal já estavam evidentes. Os novos showrunners fizeram de tudo para imitar o estilo de Willimon, mas pouco compreenderam do que ele pretendia. Privados da capacidade de observação e da finesse crítica dele, preencheram a trama com lances rocambolescos e desdobramentos francamente inconstitucionais. O saldo ficou dinâmico e assistível, mas vazio: virou uma espécie de Dallas, ou Dinastia, transferida para Washington. Assistir a esta temporada de encerramento, porém, é uma experiência desanimadora. Agora House of Cards sai do território da intriga rasteira mas excitante e adentra o terreno do fajuto; Dallas é um monumento perto do novelão sem pé nem cabeça que isto aqui se tornou.
ATENÇÃO: A PARTIR DAQUI, HÁ SPOILERS PARA QUEM AINDA NÃO VIU A SEXTA TEMPORADA
Atingida quase de morte pela demissão de Kevin Spacey na esteira das acusações de abuso sexual feitas contra ele, a série se aproveitou do gancho da quinta temporada – Claire Underwood (Robin Wright), a mulher de Frank, assume interinamente a Presidência – para se estender mais um pouco, matando Frank e imaginando como Claire, perseguida pelos escândalos de corrupção do marido e pelos acordos espúrios que ele fez, exerceria a chefia da nação. As tramas que os roteiristas puxam dessa premissa são risíveis, e constantemente misturam alhos e bugalhos. Ostensivamente, aos olhos da série, Claire é tolhida pelo preconceito contra as mulheres; poucas vezes os roteiristas registram que, além desse elemento, há um outro, muito óbvio – o fato de que ela é uma presidente sem nenhum projeto além desse mesmo, o de se manter na Presidência, e é fraca, tonta, irrefletida, vingativa e aferroada aos seus erros.
Consta que Robin Wright batalhou duro por esta temporada. É preciso mesmo ter cuidado com o que se deseja: como ela conseguiu engolir tanta bobagem, eu não sei. Claire esconde a falta de um plano de voo atacando as corporações (vendeta pessoal, uma vez que os magnatas interpretados por Greg Kinnear e Diane Lane estão arrochando a pressão sobre ela) com um simplismo que faria até Bernie Sanders enrubescer. Firma um acordo inexequível com o presidente russo (Lars Mikkelsen, um dos poucos alívios desta temporada), e se safa. Demite todo os ministros(as) numa só canetada, porque estão maquinando contra ela, e instala um gabinete só de mulheres (nesse universo alternativo, isso faz a popularidade dela subir). Finge ter entrado em depressão e passa um mês sem despachar ou dar as caras no Salão Oval, para então voltar, faceira, no momento em que bem entende. Passa impávida pela denúncia de que realizou um aborto às dezesseis semanas de gestação – exatamente a questão em que a pauta liberal mais retrocede nos Estados Unidos. E, num lance de dramaturgia mexicana, aparece grávida, postumamente, de Frank. (Pretensamente “feminista”, esta temporada tem muito pouco apreço por governantes como Angela Merkel, Michelle Bachelet ou Margaret Thatcher; pelo jeito, acredita que mulheres exercem o poder na base do chilique e do subterfúgio.)
Como nenhum desses desdobramentos tem lógica ou passa sequer perto da esfera do plausível, o elenco está em confusão patente. Atores de compromisso inabalável com seus papéis, como Michael Kelly (o executor Doug Stamper), Jayne Atkinson (a ex-secretária de Estado), Patricia Clarkson (a feiticeira política Jane Davis) e Boris McGiver (o repórter Tom Hammerschmidt), mais desviam das balas perdidas do que propriamente atuam. E Robin Wright, que foi magnética enquanto era a figura indecifrável ao lado de Kevin Spacey, é obrigada a expor facetas em que nem de longe consegue competir com o titular afastado. Como Frank Underwood fazia, ela agora fala para a câmera. Mas o resultado é ruim. Frank confidenciava seus pensamentos e tramoias ao espectador porque era um homem de apetites insaciáveis que extravasavam sua persona pública, e porque era vaidoso e precisava se vangloriar para alguém. Claire, entretanto, sempre foi gélida e guardou tudo para si, e em nenhum momento Robin Wright consegue tornar convincente essa recém-adquirida vontade de compartilhar. No último episódio, meu constrangimento virou indignação: os produtores mexem com a mais sensacional abertura já feita para uma série de TV a fim de inserir nela uma imagem ridícula. É como Greg Kinnear diz de Frank, a certa altura: “Ele não sabia quando parar”. É pena, mas House of Cards também não soube.