
As suaves pedaladas fiscais de Richard Gere no mundo nova-iorquino das altas finanças
Richard Gere está sempre no seu melhor quando seu personagem é alguém que não deixa transparecer muita coisa: embora não seja um ator particularmente versátil, Gere, que está agora com 66 anos muito ágeis e bem-conservados, é um mestre em interpretar homens que projetam personas para o mundo – e, em geral, sabe como criar brechas sutis pelas quais o espectador às vezes consegue dar uma espiadela na pessoa real que vive sob a superfície. É uma arte, sem dúvida, e é por dominá-la que Gere tem uma carreira tão longa.
Em A Negociação (que está disponível no Netflix), ele faz um milionário sangue-azul de Nova York que está manejando seus livros de contabilidade de maneira muito criativa: é preciso esconder um rombo nas finanças da empresa para conseguir vendê-la, e rápido. Um acidente de carro traz para o rolo um detetive de polícia interpretado por Tim Roth, e multiplica o caos em que o protagonista está envolvido – mas o essencial é que ninguém perceba, de maneira nenhuma, que existe caos, ou note seu nervosismo. Nicholas Jarecki, o diretor, soma conhecimento de causa (além de uma invejável autoconfiança) à arte de Gere: Jarecki é integrante dessa aristocracia financeira nova-iorquina, e começou a construir a própria fortuna ainda na adolescência. Estou à espera de que ele faça mais um filme. Pelas duas amostras que tive até aqui – A Negociação e o roteiro de Informers – Geração Perdida, de 2008, baseado no livro de Bret Easton Ellis –, ele é um talento verdadeiro.
Leia a seguir a resenha que publiquei quando o filme foi lançado nos cinemas:
Lógica interna
Em A Negociação, o investidor Richard Gere comete fraude na casa do meio bilhão de dólares. Mas é inevitável torcer por ele: todos aqui estão jogando o mesmo jogo
Richard Gere, que vem envelhecendo à maneira suave porém intensa de um conhaque XO, tira toda a vantagem da experiência para compor Robert Miller, o protagonista algo indecifrável, mas fascinante, de A Negociação. Miller, um veterano sangue azul do mercado financeiro, é servido aqui com os acompanhamentos habituais dessas figuras leoninas: o jato particular, o Maybach com chofer na pista de pouso, o apartamento fabuloso, a mulher socialite (Susan Sarandon) sempre levantando fundos para caridade, o filho sem talento e a filha (Brit Marling) ultracompetente, a amante jovem e boêmia (Laetitia Casta). E, claro, vem também com a megafraude na casa do meio bilhão de dólares. Um negócio com minas de cobre abriu um buraco na contabilidade de Miller, e ele anda empurrando dinheiro para lá e para cá a fim de vender sua firma antes que as auditorias revelem o rombo. O comprador negaceia, faz que vai assinar e não assina; e, quando Miller e sua amante sofrem um acidente de carro numa estrada deserta, ele constata a morte dela e foge. Raciocínio: o escândalo frustraria de vez a venda, e as pessoas que investiram seu dinheiro com ele é que arcariam com o prejuízo.
É óbvio que isso não é bem um raciocínio, e sim uma racionalização: uma defesa a posteriori de um instinto de sobrevivência pessoal e pecuniária. Miller não é um criminoso, como Bernie Madoff. É um sujeito que se acha decente mas não tem concepção do que é erro porque se crê incapaz de errar. Dirigido com um belo senso de ritmo por Nicholas Jarecki, o filme abrange os três dias que dura o denso e crescente pesadelo de Miller, e às vezes adquire a qualidade sutilmente irreal que assinala as tragédias quando a pessoa que está no centro delas se vê como que de fora, apreciando o senso de humor perverso das divindades da fortuna. E Gere, que como ator se definiu sempre tanto pela postura de personalidade alfa como pela habilidade para projetar fachadas indevassáveis, é o homem certo para criar um personagem cujo talento para o jogo é este: estar, ou parecer estar, à frente da situação.
Aquilo que pudesse lhe faltar em familiaridade com o mundo de Miller e suas criaturas, o diretor providencia: filho de executivos financeiros (o pai, aliás, é um filantropo emérito), Jarecki, como Miller, tem notável espírito empreendedor. Foi um hacker talentoso e, aos 16 anos (está com 33), era dono de vários negócios na área digital. Fez documentários, vendeu roteiros e financiou sua estreia na direção mediante um fundo de investimentos privados. Dirige o filme, também ele, como se não soubesse que é possível errar – e com um olhar salutarmente desimpedido para o universo de Miller, em que todos, sem exceção, estão especulando e, se necessário, blefando.
Isabela Boscov
Publicado originalmente na revista VEJA no dia 19/12/2012
Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
© Abril Comunicações S.A., 2012
A NEGOCIAÇÃO
(Arbitrage)
Estados Unidos, 2012
Direção: Nicholas Jarecki
Com Richard Gere, Tim Roth, Brit Marling, Susan Sarandon, Laetitia Casta, Nate Parker, Bruce Altman