
O demônio do bem.
Não fosse ter nascido no inferno,o protagonista de Hellboy seria um sujeito como qualquer outro.
O diretor mexicano Guillermo del Toro foi criado por uma avó fanática religiosa, que colocava tampinhas de garrafa (lado serrilhado para cima) dentro de seus sapatos para mortificá-lo e o submetia a exorcismos regulares. Foi uma infância horrível e confusa, diz Del Toro. Se há algo de positivo a contabilizar nela, é a sensibilidade do cineasta para o terror – por exemplo, em A Espinha do Diabo, passado durante a Guerra Civil espanhola – e a sua compreensão do personagem-título de Hellboy. Adaptado do quadrinho homônimo do americano Mike Mignola, o filme trata de um demônio invocado pelos nazistas, durante a II Guerra, para servir como ferramenta definitiva de destruição. Capturado pelos americanos, porém, Hellboy vira a peça central de uma agência secreta: é uma criatura nascida para o mal que renega sua natureza e se dedica a combater as forças que o geraram. E é também um exemplo da criação sobrepujando o determinismo, por assim dizer, genético. O que sustenta Hellboy nessa mudança de lado é a sua comunhão com outros espécimes tão deslocados quanto ele – a afeição filial pelo cientista que o adotou e a paixão recôndita por Liz (Selma Blair), uma garota infeliz que, sempre que suas emoções assomam, se torna uma espécie de lança-chamas.
Apesar do conflito interno e da sua aparência (mão direita de granito, pele vermelho-fogo, cauda com ponta em flecha e chifres), Hellboy poderia ser qualquer sujeito que tivesse acabado de sair da casa dos pais e estivesse se esbaldando com a ausência de controle. Mesmo quando está diante das piores ameaças, ele é incapaz de levá-las, ou a si mesmo, a sério. Hellboy, além disso, tem graves recaídas na adolescência, especialmente quando Liz está por perto. Mais do que a trama – os responsáveis pelo surgimento do demônio querem recuperá-lo –, é essa empatia do diretor com o personagem e a caracterização surpreendentemente jovial de Ron Perlman, um ator veterano de 54 anos, que fazem o filme tão atraente.
Del Toro passou sete anos brigando para levar Hellboy às telas em seus próprios termos: sem desfigurar o herói e com Perlman, com quem já trabalhara em duas outras ocasiões, à frente do filme. Por causa disso, passou bem perto de ter o projeto tirado de suas mãos. Perlman, mais conhecido como o corcunda Salvatore de O Nome da Rosa, trabalha quase sempre sob maquiagem pesada e está longe de ser um galã. Não é, portanto, o tipo de ator que faça os produtores vir correndo. O entrosamento entre ele e o diretor mais do que compensou sua falta de cacife na bilheteria: Hellboy rendeu 60 milhões de dólares nos Estados Unidos, e a continuação está garantida. Mas, à parte Hellboy 2 e um outro filme modesto, The Woodcutter, Perlman não tem ainda nenhum outro contrato engatilhado. “Hollywood não sabe o que fazer comigo”, lamenta-se. Por sorte, Del Toro não sofre da mesma miopia.
Isabela Boscov
Publicado originalmente na revista VEJA no dia 04/08/2004
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Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
© Abril Comunicações S.A., 2004
HELLBOYEstados Unidos, 2004Direção: Guillermo del ToroCom Ron Perlman, Selma Blair, Doug Jones, John Hurt, Jeffrey Tabor, Rupert Evans, Karel Roden