HBO Max tira do catálogo “…E o Vento Levou” . É certo? É errado?
Enquanto a plataforma diz que vai redisponibilizar o clássico de 1939 com comentários sobre seu conteúdo racista, venda do filme dispara na Amazon
Com a bilheteria ajustada pela inflação, ele fica em 1º lugar no ranking americano, deixando na poeira Star Wars: Uma Nova Esperança, Avatar e Titanic. No ranking mundial, fica em 3º lugar, com impressionantes 3,3 bilhões de dólares de renda corrigida. Não há dúvida: oito décadas depois de seu lançamento, …E o Vento Levou permanece um colosso junto ao público, e objeto de curiosidade intensa. A prova? Ontem, assim que a plataforma HBO Max anunciou a remoção do item de seu catálogo em razão do seu conteúdo racista, as vendas em DVD e Blu-Ray dispararam na Amazon. Foram, aliás, parar no primeiro lugar. Também o romance de Margaret Mitchell em que o filme de Victor Fleming se baseia foi alvo de uma corrida.
…E o Vento Levou é a saga da sinhazinha Scarlett O’Hara (Vivien Leigh), que vive em luxo e cercada de escravos na sua mansão colonial no meio de uma fazenda sulista (movida, é óbvio, a escravos), perde tudo durante a Guerra Civil de 1861-1865 e então se reergue. O filme é um produto do seu tempo, em que a segregação era a norma no Sul americano e negros podiam ser assassinados impunemente por infrações reais ou imaginárias. Mas é algo mais também: é uma idealização do passado escravagista, e assim produz argumentos que justificam ou racionalizam a discriminação no seu presente.
Agora vejamos: Minnesota, o Estado em que morava o segurança negro George Floyd, tem um dos mais fundos abismos raciais dos Estados Unidos. No país inteiro as estatísticas – nível de pobreza e desemprego, grau de instrução, população carcerária, gravidez adolescente etc. – desfavorecem os negros, mas em Minnesota a disparidade é aguda e flagrante. Ora, isso é uma forma bem concreta de segregação. Mais: a polícia abordou Floyd em suspeita de que ele teria tentado usar uma nota falsa de 20 dólares em uma compra, o que é uma infração não-violenta e em princípio banal. O policial Derek Chauvin o apreendeu e, sob pretexto de que ele resistira, asfixiou-o até a morte. Se o fez, é porque contava com a impunidade; o clima atual nos Estados Unidos, encorajado e insuflado por Donald Trump, é o de que sempre se pode contar com uma autoridade ou segmento da sociedade passando a mão na cabeça de racistas (“gente boa”, foi como Trump defendeu os supremacistas brancos que provocaram violência e mortes em um protesto em Charlottesville, em 2017).
A questão então é, a HBO Max errou ou acertou ao remover …E o Vento Levou de seu catálogo? (A plataforma diz que o filme será eventualmente redisponibilizado, acompanhado de um comentário sobre seu contexto e atitudes.)
De um lado, a decisão da HBO é sintoma de algo positivo – de que desta vez, finalmente, aquela entidade meio indefinível a que se dá o nome “opinião pública” foi catalisada com uma força e uma velocidade inéditas nas últimas décadas, e que há muito tempo eram devidas. A expressão de triunfo no rosto de Derek Chauvin enquanto se ajoelha com todo o peso do corpo no pescoço de George Floyd (mais o gesto de indiferença ao sofrimento da vítima, com uma das mãos no bolso) fez de um só lance o que parecia impossível: tornou clara, evidente e palpável a profundidade do racismo estrutural, um conceito que nem sempre é simples enunciar e em torno do qual, por isso mesmo, é difícil mobilizar. As ondas de choque se espalham por todos os lados, das polícias americanas, é claro, até a redação do dicionário Merrian-Webster, que vai rever e expandir o verbete “racismo”.
Na frente popular, estátuas de figuras às vezes obscuras são derrubadas não só em quase todo o território americano, como também na Inglaterra e além, sempre que se descobrem atitudes raciais impróprias na biografia do homenageado. E aí a linha entre o que é justiça e o que é sanha começa a ficar borrada. Monumentos servem para glorificar, e é constrangedor mesmo que a estátua de um traficante de escravos adorne o porto inglês de Bristol, sejam quais forem os feitos benéficos dele que primeiro motivaram o tributo. Caso a caso, não parece tão difícil decidir quem continua de pé e quem vai para o chão. Mas, no panorama geral, onde fica a fronteira, e quem o decide?
A maioria esmagadora de nós é produto de seu tempo; examinadas dentro de cinquenta, cem ou duzentos anos, todas as nossas biografias potencialmente desagradarão aos olhos do futuro. Nesse sentido, apagar ou reformular o passado conforme os critérios do presente deseduca e é muito mais daninho do que olhá-lo de frente e discuti-lo. É um prenúncio de totalitarismo, porque suprimir não equivale a erradicar; na maior parte das vezes, significa tão-somente jogar algo para as sombras. De novo, o caso de …E o Vento Levou: além de ser um filme envolvente, com alguns diálogos e passagens formidáveis, ele pode ser extremamente elucidativo – basta vê-lo com um olhar minimamente crítico para perceber que tantas das atitudes expostas ali como normais persistem hoje tal e qual, sob disfarce ou nem isso. …E o Vento Levou, em suma, mostra que, em oitenta anos, a sociedade avançou muito menos do que o necessário no seu entendimento emocional da discriminação e da segregação – e isso é chocante, e também muito instrutivo. Remover o filme, simplesmente, seria um erro. Devolvê-lo ao catálogo com um comentário lúcido, isso faz todo sentido. Mas que o devolvam logo, porque enquanto não retorna ele continuará sendo visto, de um jeito ou de outro, sem essa providência e com prejuízo.