Eu, Daniel Blake
Pessoas pequenas. É delas que o inglês Ken Loach – diretor célebre pelo naturalismo rigoroso e pelo coração grande – se ocupa neste drama premiado em Cannes
É um daqueles impasses que a burocracia é mestra em criar: Daniel Blake (Dave Johns), carpinteiro sessentão, está parado em razão de um infarto. Os médicos ordenam que ele passe alguns meses em recuperação. O serviço de seguridade social discorda: em uma entrevista surreal, Daniel crava menos que os 15 pontos necessários para receber o auxílio-saúde. Presumivelmente, não sofrer de incontinência anula os riscos de um miocárdio fraco. Daniel se pendura ao telefone, e não chega a lugar nenhum. Vai ao posto de atendimento e descobre que está em um labirinto concebido de forma a não oferecer saída. Mais: arruma briga ao interceder em favor de uma mãe solteira, com duas crianças, que perdeu a entrevista por ter se atrasado alguns minutos. Katie (Hayley Squires) foi realocada para o norte da Inglaterra por falta de moradia popular em Londres. Não conhece a cidade, pegou o ônibus errado. A pessoa à sua frente lhe cedeu o horário. Mas regras são regras, e Daniel, Katie e as crianças são expulsos do posto no braço. Eis um dos aspectos mais cortantes de Eu, Daniel Blake, já em cartaz no país: a truculência com que o Estado mantém apartados de si os cidadãos – em especial os que mais necessitam dele.
Eu, Daniel Blake deu ao diretor inglês Ken Loach sua segunda Palma de Ouro em Cannes (a primeira foi em 2006, por Ventos da Liberdade). O filme é intenso, comovente. Mas a premiação é curiosa, já que este é um Loach típico, na forma e no conteúdo. Nele há tudo o que o diretor de 80 anos e mais de cinquenta de carreira sempre teve de melhor: o naturalismo rigoroso das atuações e da ambientação; os atores que parecem ter sido encontrados nas ruas vivendo os seus papéis; o drama central concentrado até o ponto de saturação. Há também o habitual socialismo romântico de Loach, que atribui ao capitalismo o desamparo das pessoas pequenas. O que sempre redime o diretor do esquematismo, porém, é a sinceridade da sua crença em um sistema ideal, que emane dos mais nobres princípios humanistas.
Assim, se o Estado maltrata gente como Daniel e Katie, pelo menos existe uma rede espontânea que ajuda essas pessoas a se erguer dos tombos: vizinhos, ex-colegas de trabalho, jovens na mesa ao lado no cibercafé, o gerente de um mercadinho se dispõem a doar um minuto do seu tempo, uma pequena atenção, uma gentileza. Entre Daniel e Katie, a rede que se forma não é assim tênue nem casual. A cada visita que Daniel faz à casa da jovem, ora para cuidar das crianças, ora para reparar a fiação, mais o vínculo se aprofunda. Loach afasta qualquer sugestão de natureza romântica ou mesmo paternal. É de uma amizade verdadeira que ele trata aqui, forjada pelos piores momentos e pelos melhores sentimentos. Sem querer, ele meio que invalida suas próprias posturas ideológicas. Não é deste ou daquele sistema que se precisa; é de um coração como o do diretor.
Isabela Boscov Publicado originalmente na revista VEJA no dia 11/01/2017 Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A © Abril Comunicações S.A., 2017 |
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EU, DANIEL BLAKE (I, Daniel Blake) Inglaterra/França/Bélgica, 2016 Direção: Ken Loach Com Dave Johns, Hayley Squires, Sharon Percy, Stephen Clegg Distribuição: Imovision |