Engraçado, cortante e devastador: o formidável sul-coreano ‘Parasita’
Do diretor Joon-ho Bong, filme é candidato sério ao Oscar — aquele tipo de cinema tão superlativo que nada afeta sua tradução
Pânico no lar: a vizinha de cima colocou senha no wi-fi, e agora Ki-taek Kim (Kang-ho Song), sua mulher e seu casal de filhos estão sem internet e sem WhatsApp. Andando pelo apartamento meio enterrado no subsolo com os celulares erguidos acima da cabeça, à procura de sinal, Ki-woo (Woo-sik Choi) e sua irmã, Ki-jung (So-dam Park), afinal respiram aliviados: se ficarem bem no canto do banheiro, encarapitados no vaso sanitário, eles conseguem acesso a uma rede aberta. Não é preciso ser perspicaz para deduzir que há tempo a família Kim vai muito mal de grana. Ki-taek primeiro faliu, depois perdeu o emprego. Sua mulher, Chung-sook (Hye-jin Jang), também não tem trabalho, e o antigo sonho de ser uma atleta de categoria olímpica virou uma fotografia desbotada na estante. Os filhos são preparados e inteligentes, mas suas tentativas de cursar a universidade fracassaram. Unidos e expansivos, eles brincam e conversam — e enxotam o bêbado que todo dia teima em urinar bem na sua janela — enquanto dobram caixas de pizza a fim de ter alguma renda. Quando um agente de dedetização começa a fumigar a rua, Ki-taek não deixa fecharem essa mesma janela: quer aproveitar a química que vem de graça para, quem sabe, dar jeito nas baratas que infestam sua casa. Mulher e filhos tossem, mas Ki-taek nem liga; é a maneira sutil pela qual o diretor Joon-ho Bong introduz a ideia que vai constituir a espinha dorsal de Parasita (Gisaengchung, Coreia do Sul, 2019), já em cartaz no país — a de que a necessidade é a mãe não só da invenção, mas sobretudo da adaptação. E os Kim vão se reinventar e se adaptar com desenvoltura inata ao longo deste filme formidável, primeiro engraçado, depois cortante e por fim devastador, vencedor do Festival de Cannes deste ano. É provável que não perca dinheiro quem apostar que Parasita vai chegar forte ao Oscar de 2020 — não apenas na categoria de filme estrangeiro, mas também nas disputas de ator (Kang-ho Song, que trabalha com Bong desde 2003, é uma potência), de diretor e do prêmio principal.
A virada, aqui, aparece na forma de um bico para Ki-woo: o rapaz arruma de dar aulas de inglês a uma garota muito rica, que mora com os pais e o irmão caçula numa espetacular casa modernista de um bairro impecavelmente limpo de Seul. Também na residência dos Park uma janela domina a dinâmica familiar — mas esta aqui é uma imensa extensão de vidro cristalino que, mais do que separar, une o jardim belíssimo aos interiores vastos, que a eficiente governanta mantém imaculados. Como seria viver assim?, imagina Ki-woo, que, rebatizado Kevin para fins profissionais, é um sucesso como professor e de imediato conquista a aluna e a mãe dela, a gentil e algo simples Yeon-kyo (Yeo-jeong Jo). Entre as muitas provas da ingenuidade de Yeon-kyo está a crença de que seu filho pequeno é um gênio da pintura. Ora, a irmã de Ki-woo pretendia fazer faculdade de artes. Ele a apresenta como uma conhecida distante chamada Jessica — ela passa a dar aulas ao menino e, de quebra, bota-o na linha. E se houvesse alguma maneira de arrumar emprego na casa dos Park para o pai, e quem sabe até para a mãe?, indagam-se “Kevin” e “Jessica”. À medida que a família pobre se insinua no dia a dia da família rica, Parasita vai mudando de tessitura; a certa altura, os acontecimentos se precipitam (uma tempestade, aliás, tem papel crucial), levando os personagens de roldão e, sempre, pegando o espectador desprevenido.
No fervilhante cinema sul-coreano, que se sai com uma surpresa atrás da outra, Joon-ho Bong ainda assim ocupa lugar de destaque. O diretor filma com imagens de uma textura tão rica, enquadramentos tão instigantes e inesperados e movimentos de uma fluidez tão perfeita que só o abalo estético que ele provoca já seria suficiente para justificar o lugar que ocupa hoje no panorama mundial. Mas Bong é também um cineasta de grande empuxo emocional e de ideias fortes. É autor de dois filmes que obrigatoriamente vêm no topo de qualquer lista de melhores — Memórias de um Assassino (2003) e O Hospedeiro (2006) —, de um terceiro, Mother (2009), que não raro acha vaga no ranking também, e de dois longas de produção internacional, Expresso do Amanhã (2013) e Okja (2017), feitos com um apetite voraz para o experimentalismo. De volta à produção natal, porém, com Parasita ele supera sua própria marca e a de seus compatriotas em um aspecto marcante: a facilidade de comunicação.
O cinema sul-coreano em geral ignora as compartimentalizações ocidentais de gênero; é comédia, suspense, drama e melodrama (e às vezes fantasia, ou ficção científica) não propriamente ao mesmo tempo mas, melhor dizendo, em sequência — curvas perigosas e mudanças de marcha abruptas são sua especialidade. Aliada à criatividade para temas e tratamentos, essa exuberância fez muito por ajudar os filmes sul-coreanos a romper barreiras de cultura e idioma nas duas últimas décadas, em que a produção floresceu impulsionada não só por Bong, mas também por Chan-wook Park (de Oldboy), Ki-duk Kim (Pietà), Chang-dong Lee (Peppermint Candy) Hoon-jung Park (Nova Ordem) e Sang-soo Hong (Na Praia à Noite Sozinha), entre outros diretores. Parasita trabalha esses fundamentos em um patamar alto: seu senso de humor acessível, a engenhosidade com que arma o cenário e a sua fluência visual e narrativa aliciam a plateia, jogam-na dentro da história, fazem com que ela se sinta confortável — e então Joon-ho Bong puxa as navalhas que vinha escondendo e desfere golpe atrás de golpe. É cinema no seu melhor: tão perfeito e envolvente que nada pode fazer com que ele se perca na tradução.
SUCESSOS SEM FRONTEIRAS
Alguns exemplos de filmes capazes de conversar com o espectador de qualquer lugar — e em qualquer idioma
O TIGRE E O DRAGÃO (2000), do taiwanês Ang Lee, emplacou quatro Oscar e mais de 200 milhões de dólares com sua fantasia poética de artes marciais
A SEPARAÇÃO (2011) venceu o Oscar de filme estrangeiro, reafirmou o ilustre cinema iraniano e internacionalizou a carreira do diretor Asghar Farhadi
ROMA (2018), do mexicano Alfonso Cuarón, venceu três de suas dez indicações ao Oscar e rompeu uma barreira histórica entre o streaming e o cinema
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Publicado em VEJA de 13 de novembro de 2019, edição nº 2660