
Odisséia à moda americana
Os irmãos Coen, de Fargo, baseiam-se no poema de Homero para fazer uma comédia
Os irmãos americanos Joel e Ethan Coen adoram pregar peças na platéia. Em seus filmes é comum haver defuntos que não morreram direito, personagens que confundem a imaginação com a realidade e ângulos de câmara tão estranhos que a gravidade parece ter sido virada pelo avesso. Em Fargo, de 1996, eles foram ainda mais longe. Joel e Ethan garantiam que a trama – sobre um assassinato nas planícies geladas do Estado de Dakota do Norte – se baseava num fato verídico, quando ela não passava da mais completa ficção (ótima ficção, aliás, premiada com o Oscar de roteiro). Por isso é impossível não desconfiar quando, na abertura de E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?, eles dizem que seu filme se inspira na Odisséia do poeta grego Homero. Pasmem: é a mais pura verdade.
Na nova comédia, George Clooney é Everett Ulysses McGill, um salafrário bom de papo, que adora brilhantina e usa um bigodinho idêntico ao do astro Clark Gable. Em plena Depressão dos anos 30, ele escapa da prisão juntamente com dois sujeitos meio aparvalhados (os excelentes John Turturro e Tim Blake Nelson) e põe-se a procurar um tesouro que teria enterrado antes de ir para trás das grades. Mal os amigos caem na estrada, encontram um velho cego que profetiza que o trio irá viver grandes aventuras. O oráculo é uma versão disfarçada de Tirésias, que anunciava destino semelhante para Ulisses na Odisséia.
Muitos outros personagens de Homero estão no filme. O grandalhão John Goodman, por exemplo, interpreta um vendedor de Bíblias que usa um tapa-olho, em referência ao Cíclope do poema grego. Há ainda três lavadeiras que tentam seduzir os amigos com seu canto – em substituição às sereias do original – e um sem-número de homens com problemas de visão. Mal que, presume-se, teria afligido Homero. Sem falar que o verdadeiro propósito da jornada do protagonista é reencontrar sua mulher, Penny (apelido de Penélope, claro), e evitar que ela aceite outros pretendentes. Mas o que torna esta comédia realmente diferente é que, de embrulhada, os irmãos Coen transformam em mitologia todos aqueles personagens típicos do velho sul americano, da Ku Klux Klan a um guitarrista negro que vendeu a alma ao diabo – como o célebre Robert Johnson alegava ter feito. Joel e Ethan flertam também com o musical ao longo de todo o filme. Uma das cenas mais inspiradas é aquela em que, em troca de uns caraminguás, os fugitivos gravam uma canção de bluegrass – o country “raízes” – e, sem querer, viram coqueluche do rádio.
O resultado de tanta mistura é absolutamente delicioso, ainda que os espectadores mais irrequietos possam implicar com o ritmo um tanto episódico de E Aí, Meu Irmão, Cadê Você? Só não adianta tentar buscar significados ocultos ou crítica social no filme, como gostam de fazer os cinéfilos xiitas. Os Coen juram que não “plantam” simbolismos em seus filmes e fazem apenas o que a intuição dita. No fundo, dizem, nunca deixaram de ser aqueles nerds do centro-oeste americano, que passaram a adolescência devorando os filmes produzidos na era de ouro de Hollywood. “Somos uns quadradões”, define Frances McDormand, estrela de Fargo e mulher de Joel. O título E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?, por exemplo, é uma brincadeira tirada da comédia Contrastes Humanos, dirigida por Preston Sturges em 1942.
Isabela Boscov
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Publicado originalmente na revista VEJA no dia 01/11/2000
Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
© Abril Comunicações S.A., 2000
E AÍ, MEU IRMÃO, CADÊ VOCÊ?
(O Brother, Where Art Thou?)
Estados Unidos, 2000)
Direção: Joel e Ethan Coen
Com George Clooney, John Turturro, Tim Blake Nelson, Holly Hunter, John Goodman, Charles Durning