
O dinamarquês Nicolas Winding Refn tem um recorde só seu: foi vaiado duas vezes seguidas no Festival de Cannes, pela plateia de críticos. A primeira, em 2013, depois da exibição de Apenas Deus Perdoa. A segunda vaia, ainda mais forte, foi neste ano, ao final de Demônio de Neon, que está entrando em cartaz agora no Brasil. Curiosidade: em 2011, antes dessas demonstrações de reprovação, Refn ganhara o prêmio de direção em Cannes por Drive. Mais curioso ainda: os atributos que fizeram Refn ser premiado são exatamente os mesmos que agoram provocam vaias – o cinema ultraestilizado e deliberadamente artificial, a preferência por uma iluminação quase fosforescente, em tons elétricos de azul, roxo, carmin e vermelho, a redução do enredo ao mínimo em favor de imagens que provocam sensações, a violência fetichizada, o gosto pelo desvio, o humor perverso, a afinidade com as trilhas pulsantes (e sensacionais) de Cliff Martinez. De Drive para Apenas Deus Perdoa e agora para Demônio de Neon, ele apenas intensificou esses atributos e radicalizou seu projeto de um cinema sensorial. Como eu disse em uma resenha, nove entre dez espectadores detestam. Eu sou a décima espectadora: adoro, e me divirto horrores com o fraco de Refn pelo escândalo.
Em Demônio de Neon, Elle Fanning faz Jesse, uma garota de 16 anos que vai para Los Angeles tentar emplacar como modelo. Jesse ficou órfã há pouco. É interiorana, inexperiente, ingênua. Em qualquer outro filme, ela seria despedaçada pelos predadores que encontra pelo caminho: a maquiadora Ruby (Jena Malone), que olha para ela como quem quer literalmente comê-la; o fotógrafo temperamental (Desmond Harrington) que, quando vê Jesse, manda todo mundo sair do estúdio, faz ela tirar a roupa e então espalha tinta dourada no corpo dela com as mãos; o designer (Alessandro Nivola) que olha para todas as outras meninas com ar de enfado, mas exala como se estivesse tendo um orgasmo quando põe os olhos em Jesse; o gerente sórdido do motel em que ela está hospedada (Keanu Reeves), que a certa altura vai estuprar a garota do quarto ao lado; e as modelos Gigi e Sarah (Bella Heathcote e Abbey Lee), que riem da caipirice de Jesse – e então se dão conta de que ela é a criatura que vai condená-las à extinção, e passam a temê-la, invejá-la, odiá-la e também querer se apossar dela.
Jesse, a essa altura, já deixou de ser ingênua: depois de um encontro com o demônio de neon do título (pois é, não é metáfora, como eu pensava), ela aprende a se comprazer no efeito devastador que a sua beleza pura e sem artifício tem sobre essas pessoas que vivem de tentar fabricar a beleza, e vira uma entidade meio diabólica. Coisas impublicáveis vão acontecer entre ela e alguns dos personagens – por exemplo, uma cena de sexo oral com faca em que a faca não é coadjuvante, e sim o objeto central do sexo oral. Rola vampirismo, e depois canibalismo. Rola até uma cena de necrofilia lésbica, que embrulha o estômago mas também faz rir: é óbvio que Refn está fazendo um esforço danado para ser um enfant terrible e provocar justamente essas reações de repulsa.
Em certo sentido, esse empenho em escandalizar é um tiro no pé porque, como provado, uma parte da plateia se sente tão repugnada, e tão insultada com essa manipulação, que não passa aos estágios seguintes da apreciação. Eu pessoalmente embarco: a veia devassa de Refn (e o gosto dele pela forma) às vezes me lembra da frieza e perversidade de Stanley Kubrick – e ainda estou meio em dúvida, mas não descartei a hipótese de que ele seja bem menos vazio e inconsequente do que se costuma achar, e cause essa desaprovação porque está de fato pegando em algum lugar que incomoda.
Trailer
DEMÔNIO DE NEON (The Neon Demon) Dinamarca/Estados Unidos/França, 2016 Direção: Nicolas Winding Refn Com Elle Fanning, Jena Malone, Abbey Lee, Bella Heathcote, Keanu Reeves, Alessandro Nivola, Desmond Harrington, Christina Hendricks, Karl Glusman Distribuição: Califórnia |