
Robert Redford é o remédio de que Cate Blanchett precisava
Quem costuma acompanhar minhas resenhas sabe que tenho sido bem severa, digamos assim, com Cate Blanchett: na última década, ela se tornou uma atriz narcisista, dessas que sugam todo o oxigênio à sua volta, e tão encantada com seu talento e técnica que, como eu já disse a propósito de Carol, me sinto dispensada de me encantar também. Daí a minha agradabilíssima surpresa: em Conspiração e Poder, ela volta a ser a atriz destemida e quase feral que vi pela última vez em Notas Sobre um Escândalo, de 2006. Pode ser coincidência, ou pode ser resultado de uma relação direta de causa e efeito, mas, em Notas, ela contracenava com outra atriz “alfa” (e infinitamente menos vaidosa), Judi Dench. E, em Conspiração e Poder, ela contracena com Robert Redford, um dos atores mais seguros e compenetrados, e menos demonstrativos, que o cinema americano produziu. Redford pertence a uma geração que considera indecentes as manifestações de vaidade e egocentrismo – e a serenidade dele é um contraponto imensamente benéfico para Cate.
Aos fatos: em 2004, a produtora de jornalismo da rede CBS Mary Mapes (Blanchett) topou com uma história potencialmente explosiva: os indícios de que ao terminar a faculdade, em 1968, George W. Bush usara as excelentes conexões de sua família para cumprir seu serviço militar como piloto na Guarda Nacional do Texas, beeeeem longe do combate na Guerra do Vietnã. E os indícios sugeriam também que, durante os anos passados na Guarda Nacional, Bush flauteara à vontade, às vezes ausentando-se do dever por períodos prolongados. Esses boatos, na verdade, circulavam havia muito tempo; mas agora o que se prometia era documentos que poderiam comprová-los de forma inequívoca. Amiga, pupila e parceira profissional de longa data do âncora Dan Rather – um dos ícones do jornalismo americano e um emblema de integridade –, Mary Mapes propôs a Rather (Redford) fazer a reportagem como um segmento do programa 60 Minutes; o presidente da CBS (Bruce Greenwood) topou, Mary montou uma equipe (que aqui inclui Dennis Quaid, Topher Grace e Elisabeth Moss) e mergulhou na apuração.
Para os americanos, fugir do dever militar (e durante a Guerra do Vietnã a convocação para as Forças Armadas era obrigatória) ou falsear registros do serviço militar são ofensas gravíssimas – não só do ponto de vista da lei, mas mais ainda, até, do ponto de vista ético e moral. Uma denúncia como essa seria um escândalo para Bush, que então era presidente e estava em plena campanha à reeleição. Ou, melhor dizendo, seria mais um escândalo: havia pouco, estourara a revelação de que soldados e oficiais americanos torturavam sistematicamente prisioneiros em Abu Ghraib, no Iraque. E quem trouxera a notícia de Abu Ghraib a público em primeira mão? Ela própria, Mary Mapes.
O que aconteceu no decorrer da apuração conduzida por Mapes & equipe sobre o caso Bush, porém, foi um um tumulto de proporções colossais. A exibição da reportagem no 60 Minutes foi antecipada em várias semanas; Mary apressou o trabalho e negligenciou certos aspectos cruciais da verificação. Não vou dizer o quê, precisamente, nem contar as consequências, porque o filme contém muitos desdobramentos inesperados para quem não conhece ou não se lembra do caso.
O que posso dizer sem estragar surpresas é, primeiro, que Conspiração e Poder é muito mais elucidativo dos dilemas do dia a dia do jornalismo investigativo do que Spotlight – simplesmente porque é muito mais comum que as apurações transcorram nessas zonas cinzentas retratadas aqui: o que uma fonte tem a ganhar com sua revelação? A que interesses ela pode estar atendendo, saiba deles ou não? As provas que chegam às mãos dos repórteres são autênticas? Mesmo que sejam, haveria outras provas, posteriores, que possam colocar em jogo essas que se está examinando? Numa reportagem sobre padres que abusam de crianças os contornos morais são tão nítidos que não há como questioná-los; há um lado certo e um lado errado, e pronto. Em geral, porém, as apurações vêm eivadas de dúvidas e incertezas.
A segunda coisa que posso revelar é que Conspiração e Poder assumidamente narra o lado de Mary Mapes dessa história: o filme escrito e dirigido por James Vanderbilt (que escreveu o roteiro de Zodíaco para David Fincher) se baseia nas memórias que Mapes escreveu sobre o episódio, e a versão dela difere consideravelmente do veredicto que se costuma dar sobre o caso. Para um espectador brasileiro, pode parecer que a visão contrária está sendo descartada ou atropelada – mas ela é tão conhecida do público americano que a acusação não se aplica (e, de novo, o filme anuncia com todas as letras ser uma adaptação do livro de Mapes).
Finalmente, e voltando ao ponto inicial: é eletrizante ver como Cate Blanchett se põe aqui a serviço do seu papel (em vez de colocar o papel a seu serviço, como de hábito) e ataca a personagem com gana. Cate destrincha e desmonta Mary Mapes, e então a monta de novo, peça por peça. Seu tempo em cena junto com Robert Redford nem é tão grande assim, mas é ele, nitidamente, a pedra de toque dessa revigoração: ao contrário de Cate, Redford não ataca o papel de Dan Rather; ele deixa que as qualidades pelas quais é conhecido – a seriedade, a autoridade natural, o senso de humor discreto, o caráter – pouco a pouco se mesclem com as do personagem, até que ambos passem a ser uma só pessoa. É uma abordagem que areja, ventila. E que, no toca a Cate Blanchett, transforma.
Trailer
CONSPIRAÇÃO E PODER
(Truth)
Estados Unidos/Austrália, 2015
Direção: James Vanderbilt
Com Cate Blanchett, Robert Redford, Topher Grace, Dennis Quaid, Stacy Keach, Bruce Greenwood, Elisabeth Moss, John Benjamin Hickey, Dermot Mulroney
Distribuição: Mares Filmes