Assassinato no Expresso do Oriente tira o pó de Agatha Christie
Na direção e no papel do detetive Hercule Poirot, Kenneth Branagh atualiza o personagem sem modernizar o cenário

Estrela maior da velha guarda do policial, Agatha Christie (1890-1976) nunca foi escritora de acelerar o pulso de ninguém: em geral, ler os seus mistérios (quase setenta; a danada trabalhava) é mais ou menos como montar um quebra-cabeça – e daqueles com peças faltando, que só se encontram caídas debaixo da mesa no final. Mas Agatha foi popularíssima e, pelo menos de acordo com o site oficial dedicado a ela, continua sendo a mais popular de todos os autores, com 2 bilhões de exemplares vendidos em todo o mundo (bem mais do que J.K. Rowling). De forma que, assim como colar de pérolas, ela nunca sai totalmente de moda, e vez por outra seus livros voltam a ser transformados em filmes ou séries. Como a adaptação de 1974 de Assassinato no Expresso do Oriente já tinha me parecido terrivelmente antiquada – e o detetive Hercule Poirot interpretado por Albert Finney, incrivelmente irritante –, minhas expectativas para esta nova versão, dirigida e estrelada por Kenneth Branagh, era mínimas: por que alguém haveria de querer ressuscitar isto aqui? Pois tiro o chapéu para Branagh: pessoalmente, acho que ele chegou o mais perto possível de tornar Expresso interessante.

A tática, no geral, é a mesma do filme que Sidney Lumet dirigiu em 1974: achar locações maravilhosas (aqui, esplendidamente fotografadas pelo cipriota Haris Zambarloukos) e pôr um elenco estelar para viver as dezessete pessoas presentes no vagão luxuoso no qual, no inverno de 1934, uma delas será assassinada entre a partida em Istambul e a passagem pelas montanhas da Croácia – e todas as outras, à exceção evidente de Poirot, terão de ser encaradas como criminosos em potencial. Com o trem preso por uma avalanche, o bigodudo e meticuloso detetive belga, de um infernal poder de observação, tenta descobrir quem, afinal, matou o repelente negociante Edward Ratchett (Johnny Depp, bem repugnante mesmo). Teria sido o secretário pessoal dele (Josh Gad), ou ainda seu mordomo (o grande Derek Jacobi)? A princesa russa idosa (Judi Dench) ou sua acompanhante (Olivia Colman)? A divorciada americana estridente (Michelle Pfeiffer), ou talvez a missionária mal-humorada (Penélope Cruz)? A jovem governanta inglesa (Daisy Ridley) ou o médico negro (Leslie Odom Jr.) que ela parece conhecer melhor do que admite? O bailarino russo e sua mulher drogada (Sergei Polunin e Lucy Boynton), ou o austríaco obcecado com separação racial (Willem Dafoe)? Quem sabe, ainda, o latino (Manuel Garcia-Rulfo) que só por isso, por ser latino, é o suspeito preferido de todos?

É personagem que não acaba mais. Se não escapa da rotina enfadonha de apresentá-los um a um, Branagh pelo menos torna o processo mais intrigante graças à maneira como dosa a entrada deles em cena, e também graças à ótima escalação do elenco – em geral, gente capaz de dar o recado sobre seu personagem já de cara, de forma sucinta e incisiva. Mas o que faz toda a diferença, nesta adaptação, é o próprio Hercule Poirot de Branagh, muito mais suave, cheio de compaixão e sofrido do que é habitual na sua caracterização. Atormentado por um caso brabo de TOC, este Poirot tenta continuamente, com suas investigações, devolver algum equilíbrio e simetria a um mundo que insiste em sair de esquadro com suas manifestações de violência, ódio e preconceito. Sem modernizar o cenário, Branagh atualiza o personagem com tanta elegância que já nem me parece mais uma ideia tão esdrúxula que Expresso do Oriente seja o ponto de partida de uma série com o detetive – a prosseguir, em data ainda não determinada, com Morte no Nilo.
Trailer
ASSASSINATO NO EXPRESSO DO ORIENTE (Murder on the Orient Express) Estados Unidos/Malta, 2017 Direção: Kenneth Branagh Com Kenneth Branagh, Michelle Pfeiffer, Tom Bateman, Judi Dench, Johnny Depp, Leslie Odom Jr., Sid sagar, Josh Gad, Daisy Ridley, Penélope Cruz, Olivia Colman, Willem Dafoe, Manuel Garcia-Rulfo, Sergei Polunin, Lucy Boynton Distribuição: Fox |