“A Família”: Tutti buona gente
Luc Besson recupera o apetite dirigindo Michelle Pfeiffer e Robert De Niro como um casal mafioso

Por cerca de uma década, a partir de meados dos anos 1980, o diretor Luc Besson foi uma sensação: promovendo a polinização cruzada entre gêneros tipicamente americanos e estilo decididamente francês em filmes como Subway, Nikita e O Profissional, Besson encabeçava uma espécie de pós-nouvelle vague que, durante aquele período, de novo tornaria o cinema de seu país item obrigatório para aficionados. Mas, começando lá por O Quinto Elemento, de 1997, ele passou a menos e menos cuidar do que dirigia, e mais e mais a faturar com o que produzia– em geral bobajada ou pancadaria, às vezes inspirada (a série Carga Explosiva, que lançou Jason Statham), outras vezes nociva (Busca Implacável, que redesenhou Liam Neeson como herói de ação). Por isso é uma surpresa tão grande, e agradável, ver Besson recuperar o apetite que marcou seu início de carreira na comédia de humor negro A Família. Outras surpresas que o filme guarda: assim como em O Lado Bom da Vida, Robert De Niro comparece ao trabalho não apenas em corpo, mas também em espírito – coisa que não fazia desde o tempo dos afonsinhos; e Michelle Pfeiffer, tão subaproveitada nos últimos anos, tem um papel cheio de carne no qual cravar os dentes.

De Niro é Giovanni Manzoni, mafioso que anos antes dedurou seus parceiros de crime e desde então vive no programa de proteção a testemunhas do FBI, rodando de localidade em localidade: tanto ele como a mulher, Maggie (Michelle), e os filhos, Belle e Warren (Dianna Agron e John D’Leo), não perdem os maus hábitos, e volta e meia têm de ser arrancados às pressas de seus esconderijos pelo resignado agente Stansfield (Tommy Lee Jones). Já na sua primeira semana numa cidadezinha da Normandia francesa, eles mandam ver. Giovanni quebra as pernas de um encanador, Maggie ateia fogo a um mercado, Belle espanca um garoto com uma raquete e Warren chantageia e extorque colegas de escola: os Manzoni não são de deixar desaforo sem troco, e em geral o troco é bem maior que o desaforo. É uma questão de tradição e também de vocação – a moral enfaticamente perversa da história é que essas pessoas gostam de ser o que são e não pretendem deixar de sê-lo. E que a plateia, por mais que as deplore com a razão, se regozija com elas no íntimo.

Veja-se, por exemplo, a cena fabulosa em que Giovanni vai ao cineclube local para uma sessão de Os Bons Companheiros, de Martin Scorsese (no qual De Niro tinha um dos papeis principais), e regala a audiência com anedotas da máfia. Ou a cena em que Maggie relembra sua glória como esposa de capo em Nova York – e surge com um penteado muito parecido com o que tinha em De Caso com a Máfia, de 1988. É esse frisson da confluência da vida real com a dimensão icônica que ela tomou no cinema que galvaniza A Família e faz com que seus muitos furos lógicos sejam tão facilmente desculpáveis: nem os Manzoni querem abdicar da violência, nem a plateia, no fundo, quer que eles o façam.
Publicado originalmente na revista VEJA em 25/09/2013
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