“A Esposa”: Glenn Close, feroz, eleva um filme apenas honesto
Atriz adiciona complicações muito bem-vindas ao papel da mulher de um escritor narcisista que acaba de ganhar o Nobel de Literatura
Joe Castleman (Jonathan Pryce) acaba de ser avisado de que ganhou o Nobel de Literatura, e está eufórico. Joan Castleman (Glenn Close), sua mulher, porém, está curiosamente reticente. Para mim, nesse início de A Esposa, ela parecia mais é estar com cara de quem finalmente vai poder se livrar desse perrengue em sua vida – o desejo do marido pelo prêmio. Isto é, depois que atravessar os picos de narcisismo de Joe e toda a liturgia que vem na esteira de uma notícia como essa: as entrevistas, as festas, a viagem a Estocolmo, na Suécia, para receber o prêmio (e o cheque), as cerimônias intermináveis, as vezes incontáveis em que ela vai ser tratada como a mulher dedicada mas sem distinção pessoal, e como grande apoiadora do talento que ela própria não possui. E, no entanto, naquela madrugada em que Joe é avisado e o representante da Academia sueca pede para falar com ela, Joan recebe os parabéns com emoção profunda e muito genuína. Há algo de estranho nas reações dela, algo que não se encaixa. Ou talvez seja só a sua irritação com a vaidade sem freio do marido, e o esforço de pacientemente esconder essa irritação, apesar das décadas de treino nessa atividade?
Acho que alguns espectadores vão adivinhar logo qual o segredo no centro do filme dirigido pelo sueco Björn Runge e adaptado do romance da americana Meg Wolitzer. Outros espectadores, porém, nem vão suspeitar do que se passa – e eu fico numa saia-justa, porque é praticamente impossível comentar A Esposa, e as qualidades fascinantes do desempenho de Glenn Close, sem falar também da razão pela qual essa mulher se comporta da forma como se comporta. Só vou dizer uma coisa: quando Joe agradece o apoio dela no discurso oficial do prêmio, depois de ela ter pedido mil vezes que ele não fizesse nenhum agradecimento, a câmera para no rosto de Glenn Close, e o que se vê ali vale um filme inteiro: embora ela permaneça quase impassível, são tantas emoções diferentes que se veem ali, e todas elas tão furiosas, que quem viu Ligações Perigosas, de 1988, vai se lembrar de imediato da cena antológica que fecha o filme, na qual a personagem de Glenn tira a maquiagem – ou, vale dizer, tira a máscara.
A Esposa é o que eu chamaria, com algum cinismo, de um filme honesto. Ou seja, poderia ser muito melhor se fosse feito com menos sinceridade de intenções e mais franqueza verdadeira acerca das motivações muito complicadas pelas quais Joan Castleman se colocou na posição em que está (e que eu não posso revelar). É um filme que reconhece os instantes de fraqueza, os sentimentos de impotência e o hábito de apaziguar o ego masculino que às vezes fazem uma mulher abrir mão de si mesma – mas que trabalha duro para não ver como uma mulher às vezes troca (ou pensa estar trocando) essa sublimação pela oportunidade de manipular, controlar e assim exercer mais poder, ainda que de formas menos compensadoras para o seu próprio ego. É, em suma, um filme em sintonia com uma certa vertente atual do feminismo, que gosta de simplicar as coisas em vitimização feminina e culpabilidade masculina. Felizmente, certas coisas, em A Esposa, escapam a essa agenda – por exemplo, alguns dados do texto (“Sou uma fazedora de reis – uma ‘kingmaker’ – ”, diz Joan a um sujeito que indaga sobre sua ocupação); a interpretação incisiva de Christian Slater como um biógrafo que acredita ter adivinhado uma coisa ou outra; e, principalmente, a atuação de Glenn Close. Seja de propósito, seja de maneira inconsciente – ou, na minha intuição, uma combinação das duas coisas –, ela ganha muito terreno sobre o filme ao dar corpo aos sentimentos ambíguos de uma mulher que já não está mais satisfeita com os tratos que fez, mas continua calculando o quanto poderia perder em virar a mesa – e que está disposta a prolongar esses tratos se eles ainda forem proveitosos e, como tantas outras, a treinar o próprio filho no que há de pior em gratificação masculina e subterfúgio feminino.
Trailer
A ESPOSA (The Wife) Inglaterra/Suécia/Estados Unidos, 2018 Direção: Björn Runge Com Glenn Close, Jonathan Pryce, Christian Slater, Max Irons, Harry Lloyd, Annie Starke, Karin Franz Körlof Distribuição: Pandora |