“7 Dias em Entebbe”: em uma semana, sete décadas de história
Filme de José Padilha sobre o célebre sequestro de 1976 encapsula, em um único evento, o intrincado conjunto de armadilhas entre Israel e Palestina
Eram insuportáveis o calor e a falta d’água, e eram fétidos os banheiros no terminal desativado do aeroporto de Entebbe, Uganda, em que mais de 250 pessoas se amontoavam, entre reféns, tripulantes e sequestradores. O engenheiro de voo Jaques Le Moine minorou o desconforto: subiu à caixa d’água com uma caixa de ferramentas e conseguiu desobstruir a tubulação. Vigiado pelo sequestrador alemão Wilfried Böse (Daniel Brühl), Le Moine (Denis Ménochet, tão bem aqui quanto naquele sensacional prólogo de Bastardos Inglórios) trabalha, e os dois conversam. É a melhor cena de 7 Dias em Entebbe. Um terrorista a esta altura já meio relutante, Böse diz ao francês que quer um mundo melhor, e por isso é um revolucionário. De mangas arregaçadas, tirando lama dos canos, Le Moine retruca que água tratada e banheiro funcionando é que são revolução, e um único encanador vale por dez revolucionários. “Então você vale por dez de mim?”, graceja Böse. “Não. Eu sou engenheiro, e faço coisas. Valho por cinquenta revolucionários”, responde Le Moine. Imagino que não há de faltar quem se ofenda com o pragmatismo do engenheiro de voo – ou presume-se, do brasileiro José Padilha, que dirige o filme e teve a decisão final sobre qual personagem diz o quê. Mas creio que é difícil ser mais politizado e idealista do que isso: qualidade de vida é uma forma essencial de justiça, e se se vivesse com a mesma qualidade na Faixa de Gaza e na Cisjordânia que em Tel Aviv, o Hamas, o Hezbollah, os nacionalistas israelenses etc. ficariam sem assunto.
Para todos os efeitos, 7 Dias em Entebbe é a história do célebre sequestro do jato da Air France em 27 de junho de 1976. Se você procura ação ou ritmo de thriller, esqueça; o interesse aqui é outro: da mesma forma que em Ônibus 174, Padilha usa um episódio para encapsular todo um conjunto de circunstâncias que se alimentam umas às outras para levar sempre ao pior resultado. Assim, uma camada mais abaixo, 7 Dias em Entebbe é a história de como israelenses e palestinos foram se entrincheirando em posições que tornam impossível qualquer acordo que vise aquilo de que fala o engenheiro de voo quando menciona água limpa e saneamento – dois Estados contíguos, ambos viáveis e em razoável paridade de condições. É a história, também, de como o conflito no Oriente Médio virou o objeto de uma Guerra Fria ideológica, na qual todo mundo, no mundo todo, tem algum partido ou opinião que na verdade resume uma infinidade de outras atitudes. Tanto que os dois personagens no centro da trama não são israelenses nem palestinos; são os terroristas Wilfried Böse e Brigitte Kuhlmann (Rosamund Pike), que em dado momento, em nome do marxismo pró-palestino, se viram fazendo algo impensável para um cidadão alemão do pós-guerra: separando judeus, que permaneceriam reféns, de não judeus, que seriam libertados. Vai explicar isso lá em casa.
Leia a seguir a resenha completa:
Com o Dedo no Gatilho
O diretor José Padilha faz de “7 Dias em Entebbe” não um filme de ação, mas de investigação sobre os fatores que levam Israel e Palestina a um impasse permanente
Era um acontecimento não de todo incomum nos anos 70, quando a segurança nos aeroportos era mais frouxa: em 27 de junho de 1976, os 248 passageiros de um jato comercial da Air France que ia de Tel Aviv para Paris foram surpreendidos pelo anúncio de sequestro. De uma parada em Atenas, a aeronave foi desviada para Entebbe, em Uganda, pelos quatro terroristas – dois palestinos e dois alemães. Em conjunto, eles exigiam de Israel a libertação de 53 ativistas palestinos – novamente, uma demanda típica. Mas, assim que os passageiros foram transferidos para um terminal desativado no Aeroporto de Entebbe, cedido pelo ditador ugandense Idi Amin Dada, a situação mudou de caráter. Tendo recolhido o passaporte de todos, os guerrilheiros procederam a uma chamada tenebrosa: judeus para um lado, não judeus para outro. Os alemães Brigitte Kuhlmann e Wilfried Böse só então se deram conta de que qualquer ideal marxista que quisessem proclamar estava, na percepção pública, soterrado a partir daquele momento: os últimos alemães a ordenar a judeus que seguissem para a direita ou para a esquerda haviam sido os oficiais nazistas dos campos de concentração. 7 Dias em Entebbe, do diretor brasileiro José Padilha, focaliza em parte o drama que se desenrolou no terminal nos sete dias do sequestro. De outra parte, ocupa-se da disputa no governo de Israel, entre os partidários de alguma negociação (como o primeiro-ministro Yitzhak Rabin) e os proponentes da tolerância zero (caso do adversário político de Rabin e então seu ministro da Defesa, Shimon Peres, que mais tarde se converteria à via diplomática). Aí está o centro do filme: na investigação das atitudes que condenam o impasse entre Israel e Palestina a permanecer sem solução. Quem espera ver um thriller terá ampla oportunidade de se decepcionar; os aficionados de questões geopolíticas possivelmente sairão mais satisfeitos.
Objeto de recentes ataques exaltados no Brasil por causa da série O Mecanismo, Padilha se volta agora para uma controvérsia de alcance global – e, aplicando a ela sua considerável capacidade descritiva, localiza no episódio de Entebbe um dos fulcros das doutrinas em vigor no Oriente Médio. Peres (Eddie Marsan) saiu vitorioso no seu embate de gabinete com Rabin (Lior Ashkenazi), e o saldo da operação militar que ele defendeu foi, nas circunstâncias, um sucesso: dos 106 reféns, quatro vidas se perderam, e um único soldado israelense morreu – o líder da unidade, Yonatan Netanyahu (Angel Bonnani), que virou herói nacional e plataforma para que seu irmão, o atual primeiro-ministro (e linha-dura) Benjamin Netanyahu, se lançasse na política. Embora muito do êxito da ação se deva ao recuo dos terroristas alemães, que não conseguiram lidar com a ideia de executar os reféns antes que os soldados adentrassem o terminal, consagrou-se a imagem de invencibilidade do Exército e do serviço secreto israelenses, e cristalizou-se o sentimento antinegociação.
Padilha, assim, emoldura o quadro objetivo do sequestro com um conjunto de traumas, aspirações e contingências que, três décadas após a II Guerra Mundial, atingia um auge de reverberação. Se o estabelecimento do Estado de Israel, a partir de 1947, era uma reparação necessária ao genocídio, era também compreensível a indignação dos palestinos com a ocupação de seu território – e inevitável o partido que os vizinhos árabes de Israel tirariam desse descontentamento. Era natural ainda que os israelenses, assombrados pelo fantasma da suposta passividade dos judeus diante dos nazistas, rejeitassem qualquer conduta que parecesse indicar docilidade ou fraqueza – e que jovens alemães como Böse (Daniel Brühl, de Adeus, Lenin!) e Brigitte (a inglesa Rosamund Pike) se entregassem com fanatismo a combater tudo que, na sua leitura, fosse fascismo. Minucioso na reconstituição e parcimonioso nos julgamentos, Padilha entretanto defende a ideia de romper esse ciclo por meio de um recurso de imenso efeito estético e emocional: a encenação do balé Echad Mi Yodea pela companhia Bathsheba, em que, ao som da tradicional canção da Páscoa que lembra a união do povo judeu com Deus, os bailarinos vão despindo seu traje ortodoxo – à exceção de um deles, que cai morto no fim de cada estrofe.
Isabela Boscov Publicado originalmente na revista Veja em 18/04/2018 Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A © Abril Comunicações S.A., 2018 |
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7 DIAS EM ENTEBBE (Entebbe) Inglaterra/Estados Unidos, 2018 Direção: José Padilha Com Daniel Brühl, Rosamund Pike, Denis Ménochet, Eddie Marsan, Lior Ashkenazi, Mark Ivanir, Ben Schnetzer, Peter Sullivan, Juan Pablo Raba, Nonso Anozie, Andrea Deck Distribuição: Diamond |