
Tudo em cima.
Depois de quatro décadas em ação e vinte filmes, James Bond volta à melhor forma em 007 – Um Novo Dia para Morrer.
Quando a escultural Halle Berry emerge das ondas, a sensação é de puro déjà vu: até na reprodução daquele biquíni que é um ícone do figurino cinematográfico, a cena é uma homenagem àquela em que a suíça Ursula Andress, a primeira Bond girl, fazia sua aparição em O Satânico Dr. No – o filme que lançou o agente secreto britânico James Bond no cinema, há quarenta anos. Esse sentimento de nostalgia se repete todo o tempo em 007 – Um Novo Dia para Morrer (Die Another Day, Estados Unidos/Inglaterra, 2002). E isso é ótimo. Significa, no caso, que Bond deixou de ser uma caricatura para voltar a ser algo bem mais interessante: o sujeito suave, perigoso e cavalheirescamente cafajeste que Sean Connery, o primeiro e ainda maior Bond, celebrizou. Significa também que Pierce Brosnan, em sua quarta investida no personagem, finalmente consegue emprestar a ele a dubiedade que mostrara em filmes como O Alfaiate do Panamá, mas nunca (ou pelo menos não na intensidade desejada) na série.
Uma realização correta e inspirada para uma fórmula consagrada, e um ator capaz de preencher os requisitos criados por essa fórmula: para movimentar ainda mais as coisas, só se a Bond girl tivesse personalidade na mesma proporção em que ostenta curvas, e pudesse competir de igual para igual com o herói. E aí está a terceira razão pela qual Um Novo Dia para Morrer é tão delicioso. No papel de Jinx, uma espiã da Agência Nacional de Segurança americana, Halle Berry é tão capaz, espirituosa e desafeita a regras quanto Bond, com quem troca os jogos de palavras mais picantes da história recente da série. Halle é linda, é sensual e é também uma boa atriz, a primeira Bond girl oscarizada em toda a carreira do agente secreto. Quando ela entra em cena, o filme solta faíscas.
Tamanho saldo de acertos deve ser creditado, acima de tudo, a Lee Tamahori. O neozelandês de 52 anos é o primeiro diretor digno desse título que a série contratou desde que o agente secreto foi ressuscitado, com Timothy Dalton (este, o pior de todos os Bonds), em 1987. Tamahori ficou conhecido fora de seu país há oito anos, quando lançou o drama O Amor e a Fúria, sobre o relacionamento brutal entre os integrantes de uma família de maoris na Nova Zelândia. Chamado a trabalhar nos Estados Unidos, o cineasta estava à espera de uma ocasião que lhe permitisse revelar seu domínio do ofício. Parece ironia que essa chance tenha surgido por intermédio de uma franquia. É a pretensão autoral de Tamahori que lhe dá a segurança para descartar as invencionices com que os produtores procuraram revitalizar a série e voltar aos seus elementos básicos: sexo, sedução, humor e armas.
Não que o diretor tenha se furtado a algumas atualizações. Na extravagante seqüência de abertura, em que Bond tenta barganhar diamantes com um déspota norte-coreano, o agente se vê numa situação inédita. É descoberto, torturado e preso. E é também esquecido. Quando reencontra M (Judi Dench), sua chefe na Inteligência britânica, ela o demite, e justifica: “Você já não tem nenhuma utilidade para ninguém”. Isso é o que vamos ver. Bond ainda é suficientemente útil para farejar o perigo representado por outros homens — no caso, um magnata inglês que negocia diamantes e que o agente suspeita ter uma ligação com o norte-coreano que o aprisionou. Seguem-se os habituais planos de dominação mundial, mas nem eles soam tão tolos aqui. Mérito de Toby Stephens, que interpreta o magnata e é também ele um ator de muita força.
Na cena em que Stephens e Brosnan duelam com espadas num clube inglês — após uma breve ponta de Madonna, autora também da mediana canção-título —, a platéia tem uma amostra de um outro elemento fundamental, e quase nunca respeitado, da série: um vilão que nutra por Bond uma hostilidade francamente pessoal, e que seja correspondido pelo agente em toda a extensão dos seus sentimentos. O calor que esse ódio gera para o filme é inestimável. Mais quente do que ele, na verdade, só mesmo o biquíni de Halle.