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O que Shakespeare nos ensina sobre notícias falsas

Em "Júlio César", o bardo retratou, com humor ácido, a volubilidade inflamável da plebe. E deixou pistas instigantes para entender um problema do século XXI

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 29 mar 2018, 19h38 - Publicado em 29 mar 2018, 19h36

Extasiado, acabo de ler a tradução de Julio Cesar realizada pelo amigo José Francisco Botelho e publicada pela Penguin/Companhia das Letras. Os romanos de William Shakespeare falam quase todos com certa cadência imperial, e Botelho encontrou, para meu ouvido, uma versificação em língua portuguesa digna do original em inglês. Na sua tradução, é ao mesmo tempo grandioso e fluente o famoso discurso de Marco Antônio à plebe de Roma – uma hábil peça de retórica, com a qual o orador levanta o povo contra Marco Bruto e os demais conspiradores que assassinaram César, enquanto afeta reconhecer as motivações honradas do grupo. Um gostinho da nova versão em português:

“…O bom Bruto

Disse que César era ambicioso.

Se for verdade, eis um grave crime

E César foi punido gravemente. 

Com permissão de Bruto e os outros todos

— Porque Bruto é um homem muito honrado;

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E os outros todos, homens muito honrados —

Venho falar no funeral de César. 

Foi meu amigo, justo, bom, leal;

Mas Bruto diz que ele era ambicioso

E Bruto é um homem muito honrado.”

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Shakespeare mostra-se impiedoso ao retratar o caráter volúvel da plebe romana: Bruto fala contra a ameaça de tirania que Júlio César representava, e os plebeus o aclamam como novo César; Marco Antônio, no momento seguinte, lembra as benfeitorias que o líder morto deixou em Roma, e o povão já pede a cabeça de Bruto e de seus amigos. Nessa linha, o bardo tem algo a dizer sobre uma preocupação crescente das democracias de nosso tempo – as notícias falsas que se disseminam em redes sociais, ou, na já consagrada expressão em inglês, as  fake news. Esse fenômeno não é propriamente novo: o mesmo José Francisco Botelho que traduz Júlio César apresenta, em sua mais recente coluna de VEJA (número 2575 – justamente aquele que estampava a crise do Facebook na capa), uma breve “história cultural das fake news” que retrocede a exemplos da Antiguidade. E há um episódio em particular na peça de Shakespeare sobre a Roma Antiga que, acredito, explica o mecanismo que confere um insidioso e perverso poder de convencimento à falsidade. É quase uma vinheta cômica no meio da tragédia, uma anedota ligeira de humor cruel: a triste sina de Cina, o poeta. (Perdoem o trocadilho: era tão ruim quanto irresistível.)

Entre os conspiradores alinhados a Marco Bruto e Cássio, havia um romano chamado Cina. Ocorre que ele tinha um homônimo na cidade, um poeta, que sequer chegara perto da  conspiração para assassinar César – aliás, tinha simpatia pelo morto. De acordo com a narrativa muito sintética de Plutônio em Vida de Bruto — fonte principal de Shakespeare –, a turba, excitada pelo discurso de Marco Antônio, topou com o pobre poeta na rua e o linchou, convencida de que ele seria Cina, o conspirador. Shakespeare enfeita o episódio com alguns diálogos muito espirituosos e lhe dá um desfecho ao mesmo tempo hilário e perturbador. “Eu sou Cina, o poeta!”, esclarece a pobre vítima. Um plebeu responde: “Arrebentem-no por seus maus versos!”. Cina insiste em afirmar que não é o conspirador, que está sendo confundido com outra pessoa. “Não interessa”, diz o mesmo plebeu. “O nome dele é Cina; abram seu coração pra lhe arrancar o nome e depois o escorracem.”
Cina, o poeta, é morto pelo povo, e o povo sabe muito bem que ele não é Cina, o conspirador.

***

O Facebook é a rede social que mais tem se queimado no inflamado debate público global sobre as tais notícias falsas. No mês passado, uma extensa e detalhada matéria da Wired investigou o inferno astral de Mark Zuckerberg quando se confirmou que sua rede social havia sido a principal plataforma para a difusão de notícias fajutas na eleição presidencial americana (o leitor encontra a matéria principal aqui, em inglês, e um bom apanhado de seu conteúdo, com comentários, por Eduardo Wolf, aqui). Agora, o Facebook volta à linha de tiro em razão do uso de dados de seus usuários pelo Cambridge Analytica, empresa que serviu à campanha eleitoral de Donald Trump.

Sim, a propaganda política e publicidade comercial sempre tiveram na mentira uma de suas ferramentas fundamentais. Mas não é o caso de afirmar a inexistência de novidades sob o sol — não quando o sol é digital:  a ubiquidade da internet e a extensão de redes como o Facebook  tornam mais preocupante o alcance da mentira e potencialmente mais danosas as suas consequências para a vida democrática. No entanto (sim, o autor está ciente do excesso de adversativas neste parágrafo), seria o caso de perguntar por que a verdade — a notícia bem apurada e documentada — carece de poder nas redes. Uma pesquisa ampla do MIT no maior concorrente do Facebook, o Twitter, lançou luz sobre o problema. O estudo, realizado entre 2006 e 2017, analisou 126.000 notícias que foram tuitadas mais de 4,5 milhões de vezes por três milhões de pessoas. Seis organizações independentes de checagem de fatos classificaram essas notícias como falsas ou confiáveis. O achado (previsível, diria um dramaturgo elizabetano): notícias falsas alcançam mais gente e espalham-se com mais rapidez do que notícias verdadeiras.

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Tomado como critério o tempo que uma história chega a 1 500 pessoas no Twitter, a notícia falsa é em média seis vezes mais rápida do que a verdadeira. Grosso modo, uma falsidade tem 70% mais chances de ser retuitada do que uma notícia acurada. E não culpe a automação: a pesquisa descobriu que os bots replicavam notícias verdadeiras quase na mesma proporção que as falsas. São os humanos que dão asas mais ligeiras ao boato maldoso e ao rumor infundado. O cientista da informação  Soroush Vosoughi, que liderou a pesquisa do MIT, disse à revista The Atlantic que as fake news são mais poderosas por culpa exclusiva nossa: “Não é só por causa dos bots. Pode ter algo a ver com a natureza humana”.

As hipóteses para explicar nosso pendor pela falsidade incluem razões emocionais. A fofoca costuma ser mais palpitante, vibrante, titilante que os fatos duros e chatos. Razões políticas também pesam: somos mais inclinados a divulgar a mentira que corrobora nossas predileções ideológicas ou que prejudica o candidato que detestamos. E isso vale para esquerdistas e direitistas. Trump costuma ser citado, talvez por boas razões, como o político contemporâneo que  mais se beneficiou das fake news – mas The Atlantic cita uma notícia falsa prejudicial a Trump que circulou mais rapidamente e alcançou mais gente no Twitter do que uma notícia verdadeira que lhe era favorável.

A reportagem de The Atlantic conclui que mesmo uma notícia expressamente etiquetada como falsa teria maior alcance e velocidade nas redes sociais. E isso nos devolve ao Julio César de Shakespeare — um poeta que entendeu como poucos a tal natureza humana que, segundo pesquisadores do MIT, é mais simpática à boataria do que os tão criticados bots. A multidão romana quer acreditar que em suas mãos está Cina, o conspirador, e não o desgraçado poeta que pretendia prestar homenagens fúnebres ao César assassinado. E porque quer acreditar, a multidão acredita – e parte para o linchamento. Desconfio que a mesma dinâmica se repete todos os dias no Twitter e no Facebook: usuários de redes sociais divulgam falsidades mesmo sabendo, ou pelo menos suspeitando, que são falsidades.

Os linchamentos que se seguem daí são meramente verbais, ou “virtuais”, para usar um adjetivo sempre associado ao admirável mundo novo das redes. Não deixa de ser um alento.

***

Em um ensaio de 1983, o poeta alemão Hans Magnus Enzensberger já apontava para a falência da crítica diante da falsidade e da imoralidade da comunicação de massas. Internet e redes sociais ainda não existiam, claro: o objeto da análise arguta do pensador alemão era o jornal sensacionalista Bild. Os críticos da vulgaridade espalhafatosa e populista do Bild – sobretudo, os críticos alinhados à esquerda – esforçaram-se por muito tempo para esclarecer o público a respeito da natureza nefasta do jornalismo praticado pela publicação. Mas esses críticos eram ingênuos, argumenta Enzensberger: “Qualquer tentativa de esclarecer as pessoas a respeito do Bild é fútil, porque nada existe que possa ser dito sobre ele que todos ainda não estejam sabendo”. O Bild, diz Enzensberger, não é lido apesar de “destruir toda e qualquer categoria histórica, moral e política”, mas sim porque “espuma na boca e vocifera (…), porque é uma tolice, porque causa a destruição”.

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Hans Magnus Enzensberger, poeta alemão - 16/02/1994
Hans Magnus Enzensberger, poeta alemão – 16/02/1994 (Gezett/ullstein bild/Getty Images)

O ensaio sobre o Bild dá um passo temerário além: Enzensberger sugere que o jornal sensacionalista nada mais faz que levar ao extremo tendências que já se verificam nos órgãos de imprensa ditos “sérios” (Adorno, de quem Enzensberger foi intelectualmente próximo, espreita o leitor nessa passagem). Não se trata, diz o poeta de O Naufrágio do Titanic, de “colocar tudo no mesmo saco”, mas de reconhecer que também a imprensa respeitável vive de “eventos zero”, que “nada significam”: visitas papais, jogos olímpicos, julgamentos de assassinos comuns, declarações inanes do políticos a favor de direitos humanos, ou até mesmo as obrigatórias homenagens, em cadernos culturais, ao centenário do nascimento ou morte de algum compositor célebre. “Uma coisa significa o mesmo que a próxima, ou seja, tudo significa nada.”

Sim, quando somos afogados por ondas e mais ondas de informação, o resultado parece ser a equivalência geral de todas as coisas. Quatro tiros na lataria de um ônibus parecem equivalentes ao assassinato de uma vereadora e seu motorista. Ambas ocorrências são graves, sim, mas não têm a mesma gravidade – e não será difícil encontrar trivialidades que repercutiram quase com a mesma intensidade nas bolhas ideológicas da internet. Um exemplo que me intriga e escandaliza: no final de 2015, um grupo de bebuns de direita gritou ofensas contra um compositor popular de esquerda em uma rua do Leblon, e por um tempo esse barraco foi debatido como se fosse a versão tropical do caso Dreyfus.

Imagine agora, por hipótese, uma juíza que tuíta sobre os vínculos de Marielle Franco com o Comando Vermelho,  ou uma professora de filosofia que posta um “textão” ligando Sérgio Moro à CIA e ao Departamento de Estado americano. Esse sujeito hipotético é tomado pelo arrepio da sua própria e imaginada ousadia. Estou combatendo a hegemonia cultural da esquerda! Estou rompendo o bloqueio midiático do neoliberalismo!  Os amigos curtem, retuítam, compartilham a notícia que a mídia silenciou. A foto da vereadora no colo do traficante e os documentos que atestam a participação do juiz no esquema para vender o pré-sal aos gringos viajam longe e rápido. No meio dessa longa cadeia, às vezes encontraremos vozes moderadas questionando, no espaço de comentários, a veracidade das informações, ou questionando suas fontes. Dificilmente serão ouvidas. Cina não é poeta. Cina matou Júlio César.

Será nossa pobre tragédia contemporânea: quando uma coisa significa o mesmo que a próxima e tudo significa nada, só a mentira ganha significado.

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***

Fake news é um estrangeirismo desnecessário, pois tem equivalente exato em nossa língua. Sérgio Rodrigues, em sua excelente coluna na Folha de S. Paulo, pondera que o emprego da expressão em inglês pode confundir ainda mais o debate do problema. Tendo a concordar, mas, a essa altura, fake news já se consagrou no uso jornalístico corrente. Cansa lutar com as palavras mal rompe a manhã: apresento minha rendição a esse clichê.
O que não posso aceitar é a expressão que estão tentando emplacar em meio à estridente campanha petista contra O Mecanismo, a série de José Padilha: fake fiction. Quem cunhou essa bobagem não compreende o que é ficção, e, sobretudo, não aceita a liberdade que o ficcionista deve ter em seu ofício.

A expressão fake fiction é, em si mesma, uma falsidade conceitual.

 

***

 

O Triunfo do Jornal Bild ou a Catástrofe da Liberdade de Imprensa, ensaio de Enzensberger já citado acima, começa discutindo as críticas de Soren Kierkegaard aos jornais do século XIX. O filósofo dinamarquês preconizava, sem pejos, a censura. O ensaísta alemão não o segue nesse arroubo reacionário, mas adverte que Kierkegaard nos ajuda a entender que a liberdade de imprensa não é “uma conquista sem custos”.

As sempre tão comentadas fake news serão o preço das conquistas tecnológicas de nosso tempo? Provavelmente, sim. O emprego das redes sociais para espalhar mentiras e difamar adversários tende a ser um problema candente das eleições que se avizinham. Não há jaula para conter esse monstro, e pessoalmente vejo com apreensão qualquer esforço para criar  regulamentações sobre a internet e as redes sociais: além de ineficientes, novas constrições legais facilmente podem conduzir à censura.
(Para aqueles que falam de “educação” como se esta fosse a panaceia dos nossos problemas, vale lembrar que há por aí gente com diploma, mestrado, doutorado e pós-doutorado compartilhando alegremente as mais abiloladas teorias conspiratórias. Eu diria até que os cursos sobre o “golpe de 2016” que vêm proliferando nas universidades brasileiras representam a consagração acadêmica da notícia falsa.)
José Francisco Botelho, em sua serena crônica sobre a história cultural da notícia falsa, lembra que ninguém é inocente: todos cultivamos, às vezes, “uma cálida meia-verdade que nos afague as crenças”. Botelho recomenda o “ascetismo mental” como estratégia para resistir à sedutora sereia da mentira. Sim, é o tanto que podemos fazer: resistir ao “viés de confirmação”, duvidando sobretudo daquela notícia que se conforma muito placidamente a nossas ideias sobre o mundo. Com prudência e discrição, também podemos alertar aquele amigo sempre tão ardoroso em suas convicções sobre os textos fajutos que ele vem propagando em sua timeline. Ele talvez ignore a advertência, ou até se irrite com ela. Ou, quem sabe, perceba o erro, e se retrate: será uma pequena vitória da civilidade em tempos de beligerância ideológica.

Um único cidadão romano que tentasse avisar a turba que Cina não é o conspirador, que Cina não apunhalou César, que Cina é só um inofensivo poeta – essa voz isolada conseguiria impedir o linchamento? Talvez não. Mas não custaria tentar.

 

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