Amós Oz, Jesus e a figueira seca
Uma crônica de Páscoa sobre Judas, romance do escritor israelense, e sobre o intrigante personagem central dos Evangelhos

O cenário de Judas é Jerusalém, mas, ao contrário do que o título pode sugerir, a ação do romance não se passa ao tempo em Pôncio Pilatos governava a Judeia. Na entrevista que me concedeu em 2014, Amós Oz, talvez o maior escritor israelense da atualidade, disse que não desejava escrever sobre pessoas que andam por aí de túnica e sandálias. O cenário do romance é, mais uma vez, o conturbado Estado de Israel, entre 1959 e 1960, quando a Jordânia ocupava parte de Jerusalém. O protagonista é um jovem estudante desorientado na carreira (tem a vaga ideia de escrever uma tese sobre como os judeus viram a figura de Cristo ao longo da história, mas empaca na redação), na vida (não tem amigos, namorada, ligações afetivas mais sólidas) e na cidade (vive tropeçando e se perdendo pelas ruas sombrias e opressivas da Jerusalém dividida). Há, no entanto, um capítulo de Judas (um texto escrito por Shmuel?) ambientado nos tempos de Jesus, e é esta a razão de eu lembrar esse livro nesta Semana Santa. O Evangelho de Mateus diz que Judas cometeu suicídio, enforcando-se. Amós Oz, em um lance engenhoso, acrescenta um detalhe: Judas se enforcou na figueira que Jesus fizera secar.
O episódio da figueira está narrado em Marcos 11 e em Mateus 20. Em síntese: nos arredores de Jerusalém, Jesus, com fome, foi buscar frutos em uma figueira; como não encontrou nenhum (Marcos observa que não era a estação de figos), amaldiçoou a árvore, que secou. Há quem considere a figueira como uma representação de Israel, que não teria dado os frutos esperados por Deus – o que tem sua importância para Judas, romance em que reverberam os mitos antissemitas disseminados entre cristãos. A letra do Evangelho, porém, dá outro sentido ao caso: ao secar a figueira, Jesus – é ele mesmo quem o diz – demonstrou o poder da fé: “Tudo o que pedires em oração, crendo, recebereis”. Mas matar uma árvore é uma demonstração de poder mesquinha, própria não do Messias, mas de um mago vulgar. Judas, no romance de Oz, faz a pergunta óbvia: “Se ele teve vontade de comer figos, quem o impediria de realizar ali, se era só querer, um de seus milagres, fazendo com que a figueira amadurecesse seus frutos na mesma hora, muito antes de sua época (…)?”. (Comparação anacrônica: na tragédia do elisabetano Christopher Marlowe, Fausto – um mago invulgar – faz exatamente isso: produz uvas maduras, fora de época, para bajular uma duquesa entediada. E este é o homem que fez pacto com Mefistófeles, e que na cena final será engolido pela boca do inferno).

Judas conclui que o gesto cruel contra a figueira provava que Jesus fora, afinal, apenas um homem: “Maior do que todos nós, mais maravilhoso do que nós, mas feito de carne e sangue”. Há pelo menos mais uma manifestação exaltada da carne e do sangue nos Evangelhos: a violenta expulsão dos mercadores do templo (tema de outro romance de um escritor judeu: Os Vendilhões do Templo, de Moacyr Scliar). Em Marcos 11, um episódio entra no meio do outro: Jesus amaldiçoa a figueira, depois vai para Jerusalém, onde toca o terror nos mercadores; e na manhã seguinte retorna com os apóstolos para perto da fogueira amaldiçoada, quando Pedro nota que a árvore havia secado até a raiz. Existem ainda outras arestas e asperezas na personalidade do Cristo. Seu primeiro milagre, a conversão da água em vinho nas Bodas de Canaã, costuma ser lembrado como a mostra de uma disposição generosa e gregária: o Filho de Deus encontra tempo em sua trajetória de sacrifício pessoal e salvação universal para livrar os noivos de um prosaico vexame. No entanto, no mesmo passo, quando sua mãe vem pedir ajuda para salvar a festa, ele lhe dá uma resposta – para usar linguagem bem pouco bíblica – atravessada: “Mulher, que tenho eu contigo? Ainda não é chegada a minha hora”.
Jack Miles, ex-jesuíta e estudioso da Bíblia, escreveu um estudo inteligente e acessível sobre o desenvolvimento do personagem central das escrituras hebraicas, com o título um tanto provocativo de Deus, uma Biografia. Não sei bem dizer por que, não me parece que ele tenha sido tão bem sucedido ao empregar essa abordagem literária aos Evangelhos em Cristo – Uma Crise na Vida de Deus. Talvez tenha de ser assim mesmo, se acreditarmos na natureza ao mesmo tempo humana e divina de Jesus: há qualquer coisa de impenetrável em sua personalidade. Aqueles que são capazes de devoção, fé, transporte místico – estes saberão amar Jesus Cristo, o salvador. O leitor dos Evangelhos dificilmente conseguirá gostar de Jesus Cristo, o personagem.
Uma feliz Páscoa para todos que esperam a salvação. E também para nós, que não a alcançamos.