Cônsul da Coreia traça paralelo entre Han Kang e Clarice Lispector
Duas atitudes perante a aniquilação: 'Lições de Grego' (2011), de Han Kang, e 'A Hora da Estrela' (1977), de Clarice Lispector
Por Bon Il Koo, cônsul do Consulado Geral da República da Coreia e doutor com especialização em literatura russa do século XIX
Han Kang, que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura no ano passado, já havia conquistado reconhecimento na Coreia graças ao seu estilo de “prosa poética”. No entanto, antes de receber o Prêmio Nobel, ela não era uma escritora que recebia grande atenção do público em geral, com exceção para algumas de suas obras mais conhecidas. Clarice Lispector, por sua vez, é uma escritora que alcançou grande reconhecimento tanto no Brasil quanto no cenário literário internacional. Apesar de suas obras terem sido traduzidas e publicadas na Coreia nos últimos anos, ela ainda permanece relativamente desconhecida ao grande público, com exceção de um pequeno grupo de leitores devotos.
Tendo sido um leitor assíduo de Han Kang por mais de uma década, encontrei recentemente os escritos de Clarice Lispector, os quais despertaram em mim um desejo de comparar as criações literárias dessas duas proeminentes escritoras modernas da Coreia e do Brasil. Assim, embora eu esteja em uma posição ligeiramente mais favorável para compreender as obras de Han Kang, não possuo ainda uma compreensão abrangente das obras de Clarice Lispector. Consequentemente, tentarei inferir as diferenças nas visões de mundo das duas autoras a partir das minhas impressões iniciais da literatura da autora ucraniana. O impulso para este artigo surgiu de uma curiosidade pessoal, mas, no entanto, sua concepção se deu como parte de uma diplomacia pública, facilitada por um diálogo entre as literaturas das duas nações.
O corpo que se empenha em ser revivido e revigorado através da linguagem
O romance Lições de Grego, da autora sul-coreana Han Kang, narra o encontro entre um homem que está perdendo sua visão e uma mulher que luta contra a perda da voz. Unidos pelo estudo de uma língua morta, o grego antigo, os dois encontram um ponto em comum e embarcam em uma jornada de autoconhecimento. Essa língua, que há muito tempo deixou de ser proferida como som, é descrita como uma linguagem que pode ser lida, mas não falada. O protagonista, um professor de grego antigo prestes a perder a visão, aproxima-se do momento em que terá que cessar a identificação visual das formas das letras. Apesar disso, ele pode, é claro, continuar a explorar sua existência por meio de livros em braile – o tato desempenha um papel crucial na comunicação ao final do romance. Uma poeta e ex-professora de literatura, que vive em meio ao silêncio, inicia o aprendizado de uma língua desconhecida para ela, o grego antigo, a fim de “recuperar a linguagem por vontade própria” (Han, 2022, p.19). Ao pronunciar com sua própria voz as letras reconhecíveis por sua forma, a mulher desejava imbuí-las de uma nova vida — e, ao mesmo tempo, salvar a si mesma.
No entanto, esse esforço para manter a dignidade diante da extinção – é inadequado para um granizo, que está destinado a “se derreter na lama” (Han, 2022, p. 123). Pois, se a ideia do granizo que desaparece é definida como “um granizo que desaparece sem deixar rastro, de uma forma limpa, bela, completa” (Han, 2022, p. 122), então a existência de tal granizo torna-se inverossímil. Aqueles que reconhecem isso não encontram consolo na noção de uma “outra margem de existência”. Como dito por um dos personagens do romance, “a beleza é apenas aquilo que é intenso, que tem uma energia vibrante” (Han, 2022, p. 127), e “esta coisa a que chamamos de vida não devia nunca tornar-se algo que temos de aguentar” (Han, 2022, p. 127). Ainda afirma-se que “sonhar com um mundo diferente deste é um pecado” (Han, 2022, p. 127). Isso levanta uma questão fundamental: como podemos, neste mundo, realizar a tarefa aparentemente insuperável de alcançar essa “ideia” inatingível?
Um homem que ensina grego antigo em sua terra natal, a Coreia, e que estudou a língua na Alemanha, encontra-se naturalmente atraído pelo mundo de Platão. Essa fascinação decorre de seu reconhecimento de que o “mundo visível” provavelmente desaparecerá em um futuro próximo. Em sua juventude, ele cultivou uma fascinação pelo budismo, que se caracteriza como uma filosofia que “eliminou de uma só vez o mundo real da existência sensorial” (Han, 2022, p. 124). O homem também abraçou o conceito de Hwa-eom budista, que “se ergue atrás de todos os seres como sombras deslumbrantes sobre a água, e floresce como milhares de flores brilhantes que envolvem o mundo” (Han, 2022, p. 126). No entanto, a autora não conclui a narrativa aqui. Os personagens se esforçam para manter a existência um do outro por meio das experiências tangíveis do mundo físico. A autora elucida que “o corpo humano, com as suas muitas partes recortadas, ternas e vulneráveis”, “um corpo nascido para abraçar alguém, para desejar abraçar alguém” (Han, 2022, p. 128); o corpo “triste” ainda é uma entidade que não pode ser abandonada.
O Vazio como Postura diante da Sociedade
A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, gira em torno de uma mulher oriunda do Nordeste que falece no momento em que compreende a realidade de sua existência, sendo agraciada com esperança pela primeira vez em sua vida. O narrador afirma a felicidade como uma “palavra mais doida, inventada pelas nordestinas” (Lispector, 2020, p. 10). E é apenas quando Macabéa experimenta nostalgia por sua infância horrível ou contempla um arco-íris no cais do porto e um espetáculo de fogos de artifício em Maceió, testemunhados apenas uma vez na vida, que a felicidade se manifesta em sua vida – “Nunca se queixava de nada, sabia que as coisas são assim mesmo” (Lispector, 2020, p. 31).
Embora se possa dizer que Macabéa se deparou com uma classe social pela primeira vez ao ver uma cópia do romance de Dostoiévski na mesa de um conhecido, ela “se devaneava em altos e deslumbrantes sonhos” (Lispector, 2020, p. 33) no caminho para o trabalho, ou no “vazio que enche a alma dos santos” (Lispector, 2020, p. 34) que ocupa grande parte de seu tempo, indicando a necessidade de uma definição mais abrangente. Sua vida, caracterizada como “uma longa meditação sobre o nada” (Lispector, 2020, p. 34), assemelha-se à de um “santo” em conflito com o mundo. Ela frequentemente comete erros enquanto digita diligentemente em sua máquina de escrever, em um estado meditativo. O “vazio contínuo e tranquilo” que a personagem experimenta persiste mesmo no contexto de seu relacionamento romântico com Olímpico, um conterrâneo nordestino cuja força deriva da “paixão por sua terra braba e rachada pela seca” (Lispector, 2020, p. 51). Após o término desse relacionamento, Macabéa encontra consolo no riso, tendo esquecido a capacidade de derramar lágrimas.
Sua aparente “inconsequência” e “estado vazio e oco” podem ser resultado de, ou talvez uma resposta a, suas frustrações sociais (embora ela não esteja ciente delas). Ela habita um reino temporal além da barreira da “barreira do som”, tornando-a imperceptível para aqueles ao seu redor. Após sua primeira leitura de sorte por Madame Carlota, Macabéa, que tem “coração solitário pulsando com dificuldade no espaço” (Lispector, 2020, p. 59), aceita suas circunstâncias desoladas enquanto, ao mesmo tempo, nutre um emergente senso de otimismo. No entanto, a “sentença” pronunciada pela vidente é logo seguida por um acidente de carro. Foi apenas após esse acontecimento que as pessoas começaram a notar sua presença, reunindo-se aos poucos no local do acidente. O olhar coletivo serviu como catalisador, trazendo-a à existência. Quando caiu no chão, ela “parecia se tornar cada vez mais uma Macabéa” (Lispector, 2020, p. 74). Enquanto morria, Macabéa se abraçou, “com vontade do doce nada” (Lispector, 2020, p. 76), e desceu até o “profundo e negro âmago de si mesma” (Lispector, 2020, p. 76) em busca do sopro de vida que Deus concedeu aos humanos.
Incapaz de reconhecer a maldição que lhe foi imposta, Macabéa expressa o desejo de vomitar “o que não é corpo, vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontos” (Lispector, 2020, p. 77). Quando a personagem, invejosa da “girafa que pairava tão longe no ar” (Lispector, 2020, p. 49), convulsiona violentamente e vomita sangue, ela se torna, segundo o narrador, uma “brilhante estrela de cinema” (Lispector, 2020, p. 25), sendo o instante de glória da personagem.
As diferenças entre as histórias e as diferentes abordagens na busca da verdade
Independentemente da intenção do autor, a obra de um escritor talentoso é caracterizada pela sua capacidade de revelar a verdade. Essa veracidade deriva do contexto histórico particular da região na qual o autor está firmemente estabelecido. As circunstâncias dos países em que as duas escritoras atuaram são, naturalmente, muito diferentes, e esse fator exerceu uma influência decisiva para suas estratégias narrativas. Em seus romances subsequentes, Han Kang, que demonstrou um fascínio duradouro pela verdade histórica, traça a extinção por meio do processo de decadência das funções corporais em Lições de Grego, talvez indo além da explicação de mortes injustas que constituem o cerne da verdade histórica para explorar o caminho dos milagres em que “os mortos salvam os vivos”. Em sua escrita, ela se engaja em lutas desesperadas, em que “escreveu letras gregas mortas como se estivesse a sentir o seu caminho através de dezenas de estradas trifurcadas enterradas no gelo, e depois, perseverante, escreveu ao lado delas as frases insuportavelmente vivas na sua língua materna” (Han, 2020, p. 183). Apesar de A Hora da Estrela incluir uma representação vívida da desigualdade social, a autora não desenvolve uma postura crítica. A partir da representação dessecada de dias roubados pela morte, a autora contorna uma solução não-fundamental e renuncia o sentimentalismo. Essa abordagem influencia os leitores a contemplar soluções mais profundas às angústias que afligem a sociedade brasileira.
A metodologia do autor na busca pela verdade exerce uma profunda influência sobre o comportamento e a disposição de seu protagonista. Na narrativa de Lições de Grego, o protagonista, que sofre com a deterioração de sua visão, se esforça para observar o sol na margem da cegueira. Embora usasse óculos escuros, nunca foi capaz de observá-lo diretamente. Pode-se traçar um paralelo com o desejo de observar as estrelas de Macabéa em A Hora da Estrela. Enquanto o primeiro é marcado por uma postura dinâmica, a segunda é marcada pela passividade.
Uma divergência no tempo qualitativo, uma disparidade entre divindades e uma discrepância entre seres humanos
À medida que a visão do homem se deteriora gradualmente, o trecho transmite que o tempo, em sua experiência, é uma “corrente lenta e cruel de uma enorme massa” (Han, 2020, p. 40). Por sua vez, os últimos momentos de Macabéa trazem reflexões profundas sobre a essência da vida. É no momento da morte que ela obtém a essência da existência, que pode ser denominado como “a hora da estrela”. Essa experiência de um ‘outro’ tempo produz ‘outras’ concepções do divino, como existindo dentro ou fora desse tempo.
Em Lições de Grego, Han Kang faz alusão a uma entidade, caracterizada como “o deus bom extremamente triste” (Han, 2020, p. 44). Em contraste, Clarice Lispector traz um conceito de Deus pré ou pós-apocalíptico em A Hora da Estrela, sendo ele íntimo com o completo estático, onde nenhum pensamento existe. Essas perspectivas divergentes sobre divindade levam às diferenças na narrativa e na postura dos personagem que elas apresentam. Dessa disparidade nasce um corpo que conserva umidade, gerando um ininterrupto fluxo de tempo (Lições de Grego) e um corpo magro e árido carregado de um ascetismo santo, um mundo ecológico apocalíptico (A Hora da Estrela).
A sociedade coreana é profundamente influenciada pelo cristianismo, bem como pelo budismo e confucionismo, e a obra de Han Kang reflete essa complexidade. Sua compreensão sobre divindade não é nem budista nem cristã, mas sim uma síntese única dessas influências. Esse fenômeno parece semelhante à ideia do “homem-deus”, caracterizado por seu corpo envolto em mistério, com origens e desfechos que não são plenamente compreendidos, e que emerge em um contexto histórico particular. Apesar da influência do paganismo e das religiões indígenas e afro-sul-americanas, o ambiente cultural da Europa e do Brasil, onde Lispector foi criada, deve ter sido profundamente marcado pelo cristianismo. A atmosfera predominante da escatologia judaico-cristã e do pensamento escatológico parece estar profundamente presente em sua obra. Caso o discurso literário atual persista, com a devida consideração às disparidades nos contextos culturais, a descoberta de um “valor de transferência” entre as obras torna-se um resultado provável. Isso, por sua vez, pode resultar no cultivo de um patrimônio espiritual compartilhado e profundo.
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