Um país confortável
É preciso pensar a educação do ponto de vista dos estudantes, não da máquina
Há alguma coisa se movendo na educação brasileira. Há cerca de dois anos, a prefeitura de São Paulo fez uma parceria com o Liceu Coração de Jesus. Uma escola tradicional, com 140 anos, no centro de São Paulo. A escola é católica e formou muita gente da elite paulistana ao longo do tempo. O Centro declinou, surgiu a cracolândia, a escola foi perdendo a clientela. E por fim fecharia. A prefeitura fez a parceria e, de cara, permitiu que mais de 500 alunos pudessem estudar lá. Agora saíram os primeiros resultados. Em todas as séries avaliadas, na Prova São Paulo, a escola ficou acima da média da rede municipal. No 2º ano do fundamental, pontuação de 156,9 em matemática, contra 136,7 da média da rede. Diante dos sinais positivos, o prefeito Ricardo Nunes sugeriu o óbvio: ampliar o modelo. Não se trata de uma questão política. Nem tampouco de substituir o modelo estatal pelo modelo de parceria. Trata-se do aprendizado dos alunos. Crianças com nome, sobrenome, que têm direito a receber a melhor educação que pudermos oferecer.
Foi o que bastou para que nosso tradicional coro corporativista se levantasse. Uma parte da crítica é puramente ideológica: independentemente de qualquer resultado, isso não pode acontecer. Em alguma pedra filosofal está escrito que a educação pública terá de ser estatal. E ponto-final. Há argumentos mais sutis. Em um texto, li que não dá para defender um modelo a partir de um só exemplo. Perfeito. É exatamente por isso que é necessário um leque maior de parcerias. Se nosso modelo estatal tradicional fosse um sucesso, talvez essa discussão fosse desnecessária. Não é o caso. E mais: não é verdade que estamos diante de um caso isolado.
O governo de Minas Gerais também estabeleceu parceria com o setor privado, no Projeto Somar, e os resultados apontam na mesma direção. As três escolas não apenas melhoraram seu resultado no Ideb, como pontuaram acima da média da rede estadual. Elas aumentaram significativamente a aprovação e a frequência dos alunos, reduziram o absenteísmo. Na prática, o cancelamento de aulas por falta de professores. Diante da sinalização positiva, o que aconteceu? A mesma reação corporativista. Uma deputada do PT entrou com uma ação junto ao Tribunal de Contas e a ampliação das parcerias foi suspensa. Sob o curioso argumento de “risco à educação pública”. Algo que, de fato, é um risco à educação estatal. Ou, quem sabe, um risco de que novos resultados positivos apareçam, de que os alunos aprendam mais do que vêm aprendendo, o que de modo algum pode ser admitido.
O fenômeno é similar àquele a que vamos assistindo cada vez que os governos tentam buscar alternativas ao nosso quase falido monopólio estatal do ensino público. É o caso das PPPs educacionais. Agora mesmo em São Paulo, o governo anunciou uma PPP para a construção e gestão de escolas pelo setor privado. “Não pode”, decidiu um juiz de São Paulo, sob o argumento de que aquilo representaria uma “grave ameaça ao serviço público de qualidade”. Fiquei pensando em que universo paralelo vivem essas pessoas. A parceria trata da gestão operacional da escola. Cuidar do prédio, dos banheiros, do equipamento de informática. A parceria no fim foi liberada e deve crescer.
Uma boa forma de entender as dificuldades de nosso modelo estatal é lembrar da frase clássica do economista Steven Landsburg: “incentivos importam”. Incentivos dizem respeito à vida das pessoas e das organizações. Às razões que fazem cada um de nós acordar mais cedo ou agir com mais ou menos empenho no trabalho. A pergunta simples: por que isto seria diferente na educação? Observe-se o tema das faltas de professores. Na rede estadual paulista, os dados mostram que 71% dos funcionários faltam ao menos uma vez ao ano. Média de “26 dias letivos perdidos na instituição mediana”. As razões têm a ver com “problemas de saúde, custo de oportunidade e chances de ser punido”. Alguém imagina qual o custo de oportunidade e a chance de ser punido se faltar 26 dias ao trabalho, em um emprego privado qualquer no mercado?
“É preciso pensar a educação do ponto de vista dos estudantes, não da máquina”
Nosso modelo estatal foi desenhado, na Constituição, sob o ângulo dos provedores, não dos usuários. Dos políticos, que nomeiam, da corporação, que tem seu emprego garantido. E isto, por óbvio, não é apenas o caso da educação. Basta observar o que aconteceu com nossos aeroportos. Por que nossos terminais funcionavam mal, no modelo estatal, e melhoraram substancialmente, no modelo de concessão? Alguma mágica? Ou simplesmente um bom alinhamento de incentivos? O que sempre me intrigou, neste tema, é algo bastante simples: por que nossa resistência à mudança? Por que desejamos para os outros (neste caso, para as famílias de menor renda) um tipo de sistema que em hipótese nenhuma aceitaríamos para nós mesmos? A melhor explicação filosófica que conheço vem de Adam Smith, em sua teoria dos sentimentos morais: o fato de que nossa empatia é limitada. E tanto mais limitada quanto mais longe estamos dos “outros”. É algo como um círculo concêntrico. No centro do círculo vem a preocupação consigo mesmo; depois, com os familiares. Muito mais distante, com a comunidade. E, a partir daí, preocupação quase nenhuma. Tudo se transforma em um número, quem sabe uma nota no Ideb, que vagamente desejamos que melhore, em dez ou vinte anos. O fato é que somos um país confortável para certa elite. É duro escrever isso, mas é assim que por alguma razão desenhamos este país. O Brasil em que 15% das famílias fazem suas escolhas e se protegem no mercado, enquanto 85% basicamente ficam sem alternativa.
Tempos atrás assisti a uma situação exemplar neste sentido. Era uma reunião, umas vinte pessoas, a maioria de alta renda, e um empresário bacana defendia a necessidade de priorizarmos a “escola pública”. Foi quando uma senhora ergueu a mão e perguntou, com um tom de pouca paciência: “priorizar para quem?” Logo se descobriu que ela era a única da roda que efetivamente tinha filhos na escola pública. O que ela realmente desejava era ter a chance de matricular suas crianças em algumas das escolas que os demais naquela sala matriculavam os seus. Ela sabia perfeitamente dos resultados. Da desigualdade bastante real, marcada na pele, na vida, não na conversa fiada. E por isso a falta de paciência. Sua fala foi um momento raro em que o “usuário” quebrou o silêncio e apresentou uma demanda simples de igualdade. Infelizmente, sem consequência nenhuma.
O que o Brasil precisa é inverter a equação: pensar a educação do ponto de vista dos estudantes, não da máquina. Em vez de já decidir de antemão qual modelo de gestão devemos impor ao país, dar autonomia para que os gestores possam buscar as melhores alternativas, avaliando contextos e resultados. A premissa geral, lá no fundo, é bastante simples: a ideia de que todos somos iguais em direitos. E que se uns têm o direito a escolha, a boas escolas, todos deveriam ter. Ou ao menos que nos caberia algum esforço real nesta direção.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 6 de dezembro de 2024, edição nº 2922