
“Torcida branca”, escreveu a ex-assessora do governo, “descendente de europeu safade”. Todos acompanharam aquelas expressões, dias atrás. Elas são autoexplicativas e todos podem entender o seu significado. Houve algum constrangimento, a assessora terminou exonerada, assunto esquecido. O episódio poderia ser tratado como mais uma banalidade do nosso mundo de radicalismo difuso. Mas a verdade é que se trata de um comportamento recorrente. De alguma forma, a ponta do iceberg que Mark Lilla gosta de chamar de “obsessão identitária”, em nossa época. Isso vale para a raiva política, mas também para as empresas e o mundo do mercado. A pergunta é: como isso surgiu exatamente? E ainda: como chegamos a esse ponto?
Uma resposta foi formulada por Francis Fukuyama, em Identidades. Ele argumenta que faz parte da essência das sociedades liberais uma “contínua expansão do escopo da autonomia individual”. A frase é um tanto enigmática, mas traz uma interpretação positiva dos movimentos de identidade. Eles expressariam o thymos, o impulso de “indignação” diante da humilhação e do desrespeito. Ou ainda uma demanda pelo reconhecimento por parte de grupos marginalizados. A origem disso estaria nos anos 1960, quando os movimentos de identidade ligados ao público gay, ao feminismo e ao movimento negro ganham força, em especial na era dos direitos civis. Duas décadas depois, há um novo e inusitado impulso com o desmoronamento do socialismo. É nesse momento que há uma troca de guarda. A retórica em torno da “luta de classes” vai se tornando obsoleta, e as agendas difusas por direitos e pautas comportamentais ocupam mais e mais espaço. Na prática, sai de cena o líder operário, que muito frequentemente só existia na imaginação militante, e sobe ao palco o “guerreiro identitário”, em regra associado a temas de gênero, raça e orientação sexual.
Uma referência importante nessa transição foi a obra publicada em meados dos anos 1980 por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, Hegemonia e Estratégia Socialista. Na era “pós-industrial”, dizem os autores, a esquerda deveria trocar o primado da classe social, típico do marxismo, pelas “múltiplas lutas democráticas opostas a formas diversas de dominação”. Na prática, concentrar seu foco no “racismo, discriminação sexual, defesa do meio ambiente”. Tudo isso ganha ainda um novo impulso com a erupção do mundo digital. O tema identitário, a partir daí, torna-se o centro da nova guerra cultural, que pauta as democracias. Na prática, o léxico da igualdade dá lugar à lógica sem fim da “regulação”. J.K. Rowling foi devidamente proscrita, por suas opiniões sobre mulheres e trans; Monteiro Lobato vem sendo devidamente reescrito, e qualquer humorista sabe hoje o risco de ser “cancelado” fora do cânone. Nas empresas, o tema se refere, em geral, às políticas de “diversidade”. O que não deixa de ser irônico. Diante da infinita diversidade humana, concentramos o nosso foco essencialmente nos critérios de gênero, raça e orientação sexual. Aqui e ali surge alguma referência aos mais velhos, ao “ageísmo”, mas ninguém parece dar muita bola. O aspecto curioso é como convertemos a ideia generosa de diversidade em uma lógica de enquadramento. Um amigo me contou que iniciava um curso e o professor abriu a aula exaltando a “diversidade” do grupo. Na falta de outra categoria, ele cumpriu o papel de “nordestino”. Ele tem orgulho de suas origens, mas não era esse o ponto. “Me senti em uma caixa”, me disse. “Queria ser visto pelo que sou, pelas minhas ideias, minha trajetória, e não representação de alguma categoria coletiva.” De vez em quando acontece comigo. Me torno o “gaúcho”, em uma situação qualquer. Quase me vejo de bombacha e laçando um boi bravo, coisa que não me poderia ser mais estranha. Mas o estereótipo funciona. É uma forma sutil de exercício de poder. “Sou eu que te defino, não você.” Sua história e suas ideias são basicamente supérfluas. A questão é saber em que categoria você se enquadra. O que você “representa”, a partir das gavetas coletivas que efetivamente contam.
“O tema identitário torna-se o centro da nova guerra cultural”
O filósofo Kwame Appiah chama essa atitude de essencialismo identitário. Appiah é, ele mesmo, um sátiro de toda essa obsessão atual: “Sou ganês, ashanti, britânico, americano, filósofo, filho mais velho, fruto de vários mundos, leitor de várias tradições”. O essencialismo identitário lhe soa como um brutal exercício de empobrecimento do indivíduo. E a negação do melhor da tradição iluminista, cuja pedra de toque é precisamente a ideia de que cada um de nós tem o poder de se definir a si mesmo, a partir de suas ideias e valores que aprendeu a cultivar.
A questão me veio de novo quando li aquela decisão recente tomada pela Suprema Corte dos Estados Unidos sobre cotas em universidades, dizendo que cada estudante “deve ser tratado com base em suas experiências como um indivíduo, não com base em sua raça”. E que muitas universidades agem como se a “identidade de um indivíduo” não fosse dada por seus “desafios vencidos, qualificações construídas ou lições aprendidas”. O argumento do Tribunal era que aquela definição refletia uma longa tradição americana, que preza pela ideia de self-authorship, ou “autoria de si mesmo”. Tradição que ninguém traduziu melhor do que Martin Luther King dizendo que seu sonho era viver em uma América onde “seus filhos fossem julgados pelo seu caráter, e não pela cor de sua pele”. Caráter como o traço de nossa personalidade que nos distingue, em vez de nos enquadrar. Aquilo que nós mesmos soubemos nos tornar, e pelo que desejamos ser julgados.
Voltamos ao ponto inicial. O que aconteceu exatamente com os movimentos de reivindicação de respeito, e que gradativamente passam a reproduzir alguns dos piores vícios que nasceram para combater? Como passamos da demanda pela tolerância e pela diferença a uma cultura em que a própria ofensa racial se torna trivial, e a pauta se converte na obsessão em regular a cultura? Albert Camus deu pistas sobre isso em O Homem Revoltado, sugerindo que as ideias, quando levadas a um certo extremo, tendem a produzir sua própria negação. Veio daí sua crítica mortal às revoluções, nascidas das ideias mais generosas e logo dedicadas aos assassinatos em massa e campos de concentração. E sua constatação crua e sombria de que “toda nossa desgraça nasceu no dia em que se considerou legítimo matar um homem em nome de uma ideia”. Por isso sua defesa da “revolta”, da ideia de que toda utopia, por mais generosa que seja, precisa conhecer e respeitar seus próprios limites. No fundo, uma antiga lição civilizatória, a de que é na renúncia, na dúvida metódica, no comedimento, e não no excesso, que reside nossa melhor garantia da dignidade humana.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2023, edição nº 2862