
“Idiota”, escreveu Stefan Niehoff, um aposentado de 64 anos, em um tuíte. Ele se referia ao vice-chanceler alemão, Robert Habeck. Foi o que bastou. Tomou um processo, com direito a polícia revirando sua casa e tudo o mais. Parece piada, mas não é. Habeck é do Partido Verde e resolveu que esse negócio de insultar autoridades é intolerável. Criou uma máquina jurídica para processar seus críticos na internet. O caso de Niehoff foi parar no The New York Times e agora apareceu na The Economist, em reportagem sobre o “problema europeu com a liberdade de expressão”. O ponto da revista: o caso de Niehoff está longe de ser isolado. Na verdade, vai se tornando uma regra. Um estudo recente constatou que a maior parte do conteúdo removido com base no DSA, o Digital Services Act, que regula a internet europeia, era legalmente permissível. Foi tirada por excesso de prudência e ao gosto das plataformas. A provocação da revista: JD Vance tinha razão. O vice-presidente americano havia dado um sermão nos líderes europeus, três meses atrás, em uma conferência em Munique. Agora é a The Economist falando. O recado é simples: parem com essa histeria de controle, com essa mania de censura, pois isso não vai funcionar. Por enquanto, é só um mal-estar. Prendem um sujeito por rezar perto de uma clínica de aborto, tiram do jogo o vencedor de “extrema direita” das eleições na Romênia, e coisas assim. Mas logo tudo pode causar um dano bastante sério às democracias europeias.
Gosto de ver o lado patético disso tudo. Em 1800, James Madison escreveu um artigo lembrando aos americanos que um traço das repúblicas era a “animadversão”. A palavrinha ninguém usa mais, mas seu significado é claro: o discurso duro dos cidadãos sobre os governantes. À época, haviam prendido o deputado Matthew Lyon e uma penca de jornalistas por impropérios contra o presidente John Adams, e Madison percebeu o óbvio: aquilo não terminaria bem. Logo as cadeias estariam cheias de gente boquirrota, presa por “delito de opinião”. Além disso, havia a Primeira Emenda. Duzentos e tantos anos depois, parece que nada aprendemos. Ou enlouquecemos de vez. A internet ampliou infinitamente o padrão de “animadversão” nas democracias. Em vez de entender isso, nos tornamos paranoicos com o dissenso e a “agressividade” do debate público. Como sempre, seletivamente, dado nunca ter ouvido falar de alguém enfurecido com as ofensas ditas pelo seu próprio lado, ao menos no mundo da política. É por aí que vai a The Economist. A crítica toca em tema crucial: o crescimento de formas autoritárias no interior das democracias. O caminho é sempre muito parecido: critérios vagos definindo direitos individuais e oferecendo poder aos agentes do Estado, na expectativa de que eles saberão exatamente o que fazer com isso. Como escutei de um analista, a atual crença europeia de que “é fácil saber o que é verdade”.
Esse tema sempre me pareceu fascinante. Me faz lembrar de um intelectual francês de primeira grandeza, hoje um pouco esquecido: Jean-François Revel. Revel foi um socialista, até o fim dos anos 1960, mas depois foi revisando suas posições. Nos anos 1970 publicou um livro provocativo, A Tentação Totalitária. Sua grande questão: por que um modelo de sociedade claramente fracassado, além de absurdo, como era o “socialismo real”, conseguia tanto apoio entre os intelectuais? Havia várias respostas, mas uma delas sempre me chamou a atenção: e se houvesse não apenas um desejo de controle, mas também o de viver sob controle? De abrir mão do peso da responsabilidade que vem junto com as liberdades, em favor de uma autoridade que, de um jeito ou de outro, resolverá o problema? Mesmo que isso exija um tipo de poder fora de controle? Sob esse prisma, o liberalismo não seria a regra, mas uma excepcionalidade. Uma construção antinatural, precária. “O normal é a recusa do pluralismo”, provocava Revel, “não a sua aceitação.” À época, essa ideia definia o mundo totalitário. Hoje em dia tudo é um pouco mais suave. Mas o pensamento mágico continua lá.
“A tecnologia é ambivalente. Dá poder aos indivíduos e ao Estado”
O episódio recente envolvendo o incrível diálogo global entre Janja e Xi Jinping, em um jantar em Pequim, ilustra o problema. Em primeiro lugar, temos nossa primeira-dama reclamando ao chefe da ditadura chinesa sobre o TikTok. A resposta de Xi: o problema é de vocês. Se o Brasil quiser, que faça sua regulação. Ato seguinte, Lula pede a vinda ao Brasil do tal “especialista de confiança de Xi” para discutir o tema. A China tem um dos mais sofisticados sistemas de controle de redes do planeta, com o veto a serviços globais como o Facebook e o Instagram. Que raios o especialista chinês poderia fazer? O mais complicado aconteceu aqui mesmo, no Brasil. Nossa AGU resolveu determinar às redes Meta e TikTok a remoção de conteúdos, sob pena de sanções. Os conteúdos eram falsos, e essa não é a questão. Há uma maneira de fazer isso no Brasil, disciplinada pelo nosso Marco Civil da Internet. Ela exige uma autorização judicial, e não uma ordem do Executivo, para que uma plataforma seja responsabilizada. A lei diz isso exatamente para que nenhum governo possa mandar e desmandar, ele mesmo, no espaço digital. Porque nenhuma democracia pode funcionar, de modo republicano, quando o Executivo, uma instância política, diz o que é verdadeiro ou falso e escolhe o que retirar ou deixar de retirar da internet.
Lemos agora que o governo prepara um projeto prevendo que uma “autoridade da administração pública” fará as vezes de órgão regulador das plataformas digitais. E poderá mandar retirar conteúdos e mesmo bloquear a plataforma inteira “sem necessidade de decisão judicial”. Seria um erro. É ilógico. A não ser que alguém se imagine indefinidamente no poder. Não faz sentido atribuir a si mesmo um tipo de poder que logo adiante será dado aos inimigos. Daí a velha sabedoria das democracias liberais: de que as leis devem ser feitas imaginando-se que não será você, mas as pessoas das quais você discorda mais profundamente que estarão no poder. Se você mandar a polícia lá porque elas lhe chamaram de “idiota” ou fizeram um “joinha” em grupo de WhatsApp, farão o mesmo com você. E, nessa ladeira escorregadia de interdições, todos sairão perdendo.
A The Economist sugere que “o melhor seria retornar aos velhos e bons princípios liberais de que o dissenso, mesmo que barulhento, é melhor do que o silêncio forçado”. E que, cada vez que andarmos atrás de saídas simples para problemas complicados, como a “animadversão” na era digital, daremos com os burros n’água. De modo que o melhor seria agir com prudência. Não faremos isso. A tecnologia é ambivalente. Ao mesmo tempo que dá poder aos indivíduos, dá poder ao Estado, e seus agentes, contra os cidadãos. É isso que os chineses descobriram e sabem fazer. E por isso torço, sinceramente, que seus especialistas, ao menos nessa matéria, não apareçam por aqui.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 23 de maio de 2025, edição nº 2945