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Fernando Schüler

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O pensamento mágico

A tecnologia é ambivalente. Dá poder aos indivíduos e ao Estado

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 24 Maio 2025, 08h00

“Idiota”, escreveu Stefan Niehoff, um aposentado de 64 anos, em um tuíte. Ele se referia ao vice-chanceler alemão, Robert Habeck. Foi o que bastou. Tomou um processo, com direito a polícia revirando sua casa e tudo o mais. Parece piada, mas não é. Habeck é do Partido Verde e resolveu que esse negócio de insultar autoridades é intolerável. Criou uma máquina jurídica para processar seus críticos na internet. O caso de Niehoff foi parar no The New York Times e agora apareceu na The Economist, em reportagem sobre o “problema europeu com a liberdade de expressão”. O ponto da revista: o caso de Niehoff está longe de ser isolado. Na verdade, vai se tornando uma regra. Um estudo recente constatou que a maior parte do conteúdo removido com base no DSA, o Digital Services Act, que regula a internet europeia, era legalmente permissível. Foi tirada por excesso de prudência e ao gosto das plataformas. A provocação da revista: JD Vance tinha razão. O vice-presidente americano havia dado um sermão nos líderes europeus, três meses atrás, em uma conferência em Munique. Agora é a The Economist falando. O recado é simples: parem com essa histeria de controle, com essa mania de censura, pois isso não vai funcionar. Por enquanto, é só um mal-­estar. Prendem um sujeito por rezar perto de uma clínica de aborto, tiram do jogo o vencedor de “extrema direita” das eleições na Romênia, e coisas assim. Mas logo tudo pode causar um dano bastante sério às democracias europeias.

Gosto de ver o lado patético disso tudo. Em 1800, James Madison escreveu um artigo lembrando aos americanos que um traço das repúblicas era a “animadversão”. A palavrinha ninguém usa mais, mas seu significado é claro: o discurso duro dos cidadãos sobre os governantes. À época, haviam prendido o deputado Matthew Lyon e uma penca de jornalistas por impropérios contra o presidente John Adams, e Madison percebeu o óbvio: aquilo não terminaria bem. Logo as cadeias estariam cheias de gente boquirrota, presa por “delito de opinião”. Além disso, havia a Primeira Emenda. Duzentos e tantos anos depois, parece que nada aprendemos. Ou enlouquecemos de vez. A internet ampliou infinitamente o padrão de “animadversão” nas democracias. Em vez de entender isso, nos tornamos paranoicos com o dissenso e a “agressividade” do debate público. Como sempre, seletivamente, dado nunca ter ouvido falar de alguém enfurecido com as ofensas ditas pelo seu próprio lado, ao menos no mundo da política. É por aí que vai a The Economist. A crítica toca em tema crucial: o crescimento de formas autoritárias no interior das democracias. O caminho é sempre muito parecido: critérios vagos definindo direitos individuais e oferecendo poder aos agentes do Estado, na expectativa de que eles saberão exatamente o que fazer com isso. Como escutei de um analista, a atual crença europeia de que “é fácil saber o que é verdade”.

Esse tema sempre me pareceu fascinante. Me faz lembrar de um intelectual francês de primeira grandeza, hoje um pouco esquecido: Jean-François Revel. Revel foi um socialista, até o fim dos anos 1960, mas depois foi revisando suas posições. Nos anos 1970 publicou um livro provocativo, A Tentação Totalitária. Sua grande questão: por que um modelo de sociedade claramente fracassado, além de absurdo, como era o “socialismo real”, conseguia tanto apoio entre os intelectuais? Havia várias respostas, mas uma delas sempre me chamou a atenção: e se houvesse não apenas um desejo de controle, mas também o de viver sob controle? De abrir mão do peso da responsabilidade que vem junto com as liberdades, em favor de uma autoridade que, de um jeito ou de outro, resolverá o problema? Mesmo que isso exija um tipo de poder fora de controle? Sob esse prisma, o liberalismo não seria a regra, mas uma excepcionalidade. Uma construção antinatural, precária. “O normal é a recusa do pluralismo”, provocava Revel, “não a sua aceitação.” À época, essa ideia definia o mundo totalitário. Hoje em dia tudo é um pouco mais suave. Mas o pensamento mágico continua lá.

“A tecnologia é ambivalente. Dá poder aos indivíduos e ao Estado”

O episódio recente envolvendo o incrível diálogo global entre Janja e Xi Jinping, em um jantar em Pequim, ilustra o problema. Em primeiro lugar, temos nossa primeira-dama reclamando ao chefe da ditadura chinesa sobre o TikTok. A resposta de Xi: o problema é de vocês. Se o Brasil quiser, que faça sua regulação. Ato seguinte, Lula pede a vinda ao Brasil do tal “especialista de confiança de Xi” para discutir o tema. A China tem um dos mais sofisticados sistemas de controle de redes do planeta, com o veto a serviços globais como o Facebook e o Instagram. Que raios o especialista chinês poderia fazer? O mais complicado aconteceu aqui mesmo, no Brasil. Nossa AGU resolveu determinar às redes Meta e TikTok a remoção de conteúdos, sob pena de sanções. Os conteúdos eram falsos, e essa não é a questão. Há uma maneira de fazer isso no Brasil, disciplinada pelo nosso Marco Civil da Internet. Ela exige uma autorização judicial, e não uma ordem do Executivo, para que uma plataforma seja responsabilizada. A lei diz isso exatamente para que nenhum governo possa mandar e desmandar, ele mesmo, no espaço digital. Porque nenhuma democracia pode funcionar, de modo republicano, quando o Executivo, uma instância política, diz o que é verdadeiro ou falso e escolhe o que retirar ou deixar de retirar da internet.

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Lemos agora que o governo prepara um projeto prevendo que uma “autoridade da administração pública” fará as vezes de órgão regulador das plataformas digitais. E poderá mandar retirar conteúdos e mesmo bloquear a plataforma inteira “sem necessidade de decisão judicial”. Seria um erro. É ilógico. A não ser que alguém se imagine indefinidamente no poder. Não faz sentido atribuir a si mesmo um tipo de poder que logo adiante será dado aos inimigos. Daí a velha sabedoria das democracias liberais: de que as leis devem ser feitas imaginando-se que não será você, mas as pessoas das quais você discorda mais profundamente que estarão no poder. Se você mandar a polícia lá porque elas lhe chamaram de “idiota” ou fizeram um “joinha” em grupo de WhatsApp, farão o mesmo com você. E, nessa ladeira escorregadia de interdições, todos sairão perdendo.

A The Economist sugere que “o melhor seria retornar aos velhos e bons princípios liberais de que o dissenso, mesmo que barulhento, é melhor do que o silêncio forçado”. E que, cada vez que andarmos atrás de saídas simples para problemas complicados, como a “animadversão” na era digital, daremos com os burros n’água. De modo que o melhor seria agir com prudência. Não faremos isso. A tecnologia é ambivalente. Ao mesmo tempo que dá poder aos indivíduos, dá poder ao Estado, e seus agentes, contra os cidadãos. É isso que os chineses descobriram e sabem fazer. E por isso torço, sinceramente, que seus especialistas, ao menos nessa matéria, não apareçam por aqui.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

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Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 23 de maio de 2025, edição nº 2945

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