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Fernando Schüler

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O paradoxo do mérito

A vida é feita de infinitas histórias. Todas elas nos dizem para acreditar nas pessoas e no melhor que cada um pode ser

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 11h50 - Publicado em 28 Maio 2022, 08h00

Dias atrás li uma entrevista de Michael Sandel, filósofo de Harvard, sugerindo que Messi e Cristiano Ronaldo deveriam estar em “dívida”, em vez de celebrar seu sucesso como resultado de algum tipo de mérito pessoal. Sandel escreveu um best-seller, A Tirania do Mérito, atacando o que chama de “retórica da ascensão”. Critica Bill Gates por associar a ideia de “ganhar mais” com “estudar mais” e coisas do tipo. Sugere substituir a competição por vagas nas universidades, a partir do conhecimento de cada um, por sorteios. Seria uma forma de mostrar a força do acaso, e não de coisas como o preparo e o estudo, na vida das pessoas. Sempre admirei Sandel. Até trabalhamos juntos, em algum momento, mas suspeito que exista alguma coisa mal colocada em seu argumento.

“A ideia meritocrática fez o mundo moderno”, diz Adrian Wooldridge, editor da The Economist e autor do belíssimo livro The Aristocracy of Talent. A obra mostra como a ideia das “carreiras abertas ao talento” desempenhou um papel-chave na ruptura com as velhas estruturas da Europa aristocrática, em que o sucesso dependia essencialmente do nascimento e do pertencimento social. A noção de que qualquer um poderia ocupar a posição que quisesse, “sem outra distinção que não suas virtudes e talentos”, estava lá, inscrita na Declaração dos Direitos Humanos, da Revolução Francesa. Essa foi uma ideia central na grande tradição iluminista. Ela esteve na base da gradativa universalização do acesso à educação, no mundo moderno, e serviu de pavimento para a enorme transformação econômica, na era industrial, assim como para a lenta afirmação de nossas democracias.

O radicalismo antimeritocrático atual se organiza sobre uma espécie de falácia do espantalho, que consiste em “denunciar a ideia fraudulenta de que vivemos em sociedades meritocráticas”. O truque é fazer acreditar que de fato alguém defenda a ideia esdrúxula de que, em uma economia de mercado, o sucesso é definido pelo mérito pessoal. Isso é uma bobagem. Não há uma régua para definir ou medir o que significa mérito individual. O mercado remunera o valor, não o mérito. As pessoas compram celulares da Apple não por reconhecer o talento de Steve Jobs, mas pela boa relação custo-benefício de seus produtos. No mais, é perfeitamente plausível que alguém faça sucesso, ou fique milionário, simplesmente por um lance de sorte. O sujeito pode ganhar na loteria, por exemplo, ou herdar 1 milhão de dólares de uma tia distante. Simplesmente não há como separar o que é resultado do esforço ou do acaso.

“Ideia iluminista: é preciso acreditar um pouco mais nas pessoas”

Isso não significa que o esforço, a disciplina e a capacidade de renúncia não sejam decisivos para o sucesso. Reside aí o paradoxo do mérito. Tyler Cowen e Daniel Gross observam que nos EUA, de 1980 a 2000, o grau de escolaridade explicava 75% da desigualdade de salários; nas últimas duas décadas, esse porcentual caiu para 38%. As diferenças de ganhos surgem majoritariamente dentro dos grupos de mesmo padrão educacional. O que vai fazendo a diferença são precisamente aspectos ligados ao mérito e ao talento. A capacidade de alguém apresentar uma performance superior, pela capacidade de inovar ou de trabalhar duro, mesmo competindo com pessoas com a mesma base educacional. Há algo associado ao fator humano, à “capacidade de perseverar em objetivos de longo prazo”, como define a psicóloga Angela Duckworth, fazendo a diferença na vida das pessoas. E é simplesmente um erro fazer de conta que essas coisas não existem, quem sabe para não destoar da multidão barulhenta.

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O desafio é cultivar uma visão inclusiva do mérito. Em vez de renunciar ao princípio das “carreiras abertas ao talento”, crucial na formação moderna, deveríamos andar para a frente. Assegurar que cada um tenha direito a uma base de oportunidades iguais. A igualdade pura e simples de oportunidades não passa de uma miragem. Seria preciso separar os filhos das famílias, impor a todos a mesma educação e, por fim, equalizar a sorte e o azar. O segredo é focar no que Harry Frankfurt chamou de “suficiente”. Isso pode significar muitas coisas, mas todos concordariam com o pacote básico, que inclui uma sociedade aberta, feita de direitos iguais e uma boa educação. Educação que realmente faça a diferença, colocando alunos de menor renda nas mesmas escolas, ou ao menos em escolas similares, onde estudam os alunos de maior renda. Curiosamente, o que nossa elite atrasada não quer nem ouvir falar.

Assegurado o básico, são as escolhas de cada um que devem fazer a diferença. Na prática, a famosa frase de Obama: “Se você tentar, você pode conseguir”. Meu amigo Sandel achou a frase um insulto. Acha que ela é ofensiva para os que não conseguiram chegar lá. Fico com Obama. Se alguém falhou (e quem nunca?), deve ter a chance de aprender e voltar ao jogo. Essa ideia contém um claro sentido ético: desejamos não apenas ter sucesso, mas saber que somos autores do caminho pelo qual trilhamos. E talvez seja por aí que se mova uma boa sociedade. Aquela que não trate as pessoas como “vítimas das circunstâncias”, como diz Wooldridge.

Para uma visão inclusiva do mérito, sugiro prestar atenção à hipótese de Howard Gardner, psicólogo de Harvard, de que a inteligência humana é múltipla. Ele identificou nove grandes campos, que vão da inteligência lógico-matemática à inteligência interpessoal. Neymar pode não se interessar muito por filosofia, mas sua capacidade corporal-cinestésica é constrangedoramente melhor que a minha. A tese de Gardner recupera a velha ideia iluminista de que todos somos capazes. E que é preciso acreditar um pouco mais nas pessoas. Apostar que, recebendo a chance devida, as pessoas saberão voar muito mais alto do que nossos preconceitos permitem imaginar.

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É o que diz Ken Robinson, o grande educador inglês. Ele conta a história de uma “menina-problema” na Inglaterra elitista dos anos 1930. Uma daquelas alunas dispersivas, que não param no lugar e terminam por irritar os mais pacientes professores. A guria ia ser mandada para uma escola de “alunos-problema”, mas sua mãe pediu uma última chance. Foi a um psicólogo, que a deixou por algum tempo sozinha, em uma sala, com uma música ao fundo. Minutos depois, a menina dançava pela sala. O psicólogo chamou a mãe dela e, quando ambos observavam aquela cena, vaticinou: sua filha não é um problema, é uma bailarina.

Essa história sempre mexeu comigo. Qualquer um de nós poderia ser aquela menina. O que ela recebeu não foi muito. Foi uma chance básica de fazer a diferença no mundo. Seu nome era Gillian Lynne. Ela se tornou uma estrela do Royal Ballet, mas essa é apenas a sua história. A vida é feita de infinitas histórias. Todas elas nos dizem para acreditar nas pessoas e no melhor que cada um pode ser. Isso está lá, no coração do projeto moderno, e diz respeito a valores dos quais não deveríamos abrir mão.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

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Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 1 de junho de 2022, edição nº 2791

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