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O país rendido

Boa parte do Brasil deseja uma ‘democracia de tutela’

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 17 ago 2024, 08h00

“O ministro cismou com isso aí”, diz um juiz, em Brasília. “Isso aí” é um cidadão brasileiro. Crítico duro do “sistema”, do próprio ministro, na balbúrdia digital. Como o ministro está “sem sessão”, continua o auxiliar, ele está com tempo para ficar “procurando”. O grand finale vem do próprio ministro: “Peça para o Eduardo analisar as mensagens (do tal “cidadão crítico”) para vermos se dá para bloquear e prever multa”. Para resumir: primeiro escolhe o alvo político. Depois vai pesquisando na internet para produzir o “laudo”. Isto é, a justificativa de que a autoridade precisa para fazer o que quer fazer. Isto é, censurar, bloquear e tudo que sabemos. Em outro momento, o foco é uma revista. “Vamos levantar todas essas revistas golpistas para desmonetizar nas redes”, diz a autoridade. O juiz responde que havia encontrado apenas matérias jornalísticas e pergunta o que deveria colocar lá. “Use sua criatividade”, responde o chefe, seguido de algumas risadas.

As mensagens reveladas por Glenn Greenwald e Fabio Serapião, na série de reportagens publicadas esta semana, são um striptease das instituições brasileiras. É evidente que há muito o que vir à tona, há o necessário contraditório e há a investigação minuciosa disso, que deve ser feita. Mas o que já veio à tona é para lá de preocupante. Imaginem uma autoridade de Estado, em Brasília, literalmente pedindo para “disfarçar” o nome de um tribunal, e do próprio ministro, em documentos oficiais. Para não ficar “chato”, ou muito “descarado”. A autoridade pedindo para “ajustar” um documento oficial (haveria outro nome para isso?), dizendo: “Onde se lê o nome de um tribunal (que realmente fez o pedido), ponha o nome de outro tribunal”. Pois é. Não há muito o que dizer sobre tudo isso. Os fatos falam tão alto que qualquer comentário soa um pouco irrelevante. O modus operandi é claro. Define-se o foco político e logo se demanda da assessoria que se produzam as “provas”. Como definiu um jurista bem-humorado, “atira a flecha e depois pinta o alvo”. Punições ad hoc, sem devido processo, sem provocação, sem contraditório. E, nesse caso, feitas por um tribunal eleitoral fora do período eleitoral. É isso. Nós nos transformamos na única democracia do planeta onde os direitos individuais mais elementares de um cidadão flutuam à mercê da subjetividade de uma autoridade de Estado. Autoridade que fica “braba”. Que “cisma” com este ou aquele. E a partir daí “é uma tragédia”, como escutamos em um dos áudios.

Tragédia, sim. Mas para quem vai em cana sem nem saber por quê. Quem é banido das redes “de ofício”. Quem tem as contas bloqueadas por um papo furado no WhatsApp. Quem morre num presídio de Brasília, sem eira nem beira, porque ninguém despachou o processo. Uma tragédia, de fato. E quem sabe merecida. Minha intuição é que nos transformamos exatamente no país que desejamos ser.

Boa parte do Brasil deseja que as coisas sejam assim. Deseja que tenhamos uma “democracia de tutela”. Com a condição de que o grande xerife mande fazer laudo só para o “outro lado”. Enquanto for assim, tudo estará bem para boa parte da imprensa, da academia, das “instituições” e do mundo político. O amor à “abstração da regra”, vamos convir, nunca foi especialidade brasileira. Não passa de autoilusão imaginar que nosso vezo patrimonialista só funciona nas relações entre o Estado e o mundo dos interesses materiais. Ele está lá, inteirinho, no modo como lidamos com o universo dos direitos. No servilismo do auxiliar da autoridade que pergunta: “O que eu devo escrever nesse dossiê?”. Na autoridade que diz: “Muda aí o nome do tribunal”. Que alerta que o “doutor” está com pressa, quer a “prova” logo, porque quer fazer o que já decidiu fazer. Tudo sob uma certa ficção em torno da legalidade autorreferente, ajustada aos imperativos do “contexto”.

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“Boa parte do Brasil deseja uma ‘democracia de tutela’ ”

Ainda na outra semana tivemos notícia da soltura do Filipe Martins. A prisão cujas razões formalmente apresentadas nunca existiram. Do sujeito que de fato nunca tentou fugir, nunca saiu do país, e que mesmo assim ficou lá, em uma prisão no Paraná, durante seis meses. Alguém preocupado? Alguém vai responder por isso? Ou há muito já entendemos o jogo? Cá entre nós, é o mesmo caso daquela “senhora que pintou uma estátua com batom”, na ótima definição do ex-ministro Nelson Jobim esta semana. A Débora Santos, que de fato pintou uma frase irônica naquela estátua da Justiça, na frente do STF, e está em cana há catorze meses, com os dois filhos pequenos por aí, à espera de um dia terem a mãe de volta, em casa.

Jobim é um raro exemplo de intelectual brasileiro que distingue o mundo da política, com suas paixões, e o mundo dos direitos, pautado pela lei e sua impessoalidade. A distinção republicana, por excelência. Esta semana ele definiu o 8 de Janeiro de maneira precisa: não uma “tentativa de golpe”, mas a “catarse pela frustração com a não obtenção de uma intervenção militar”. No transe brasileiro, nada disso importa. Há uma narrativa política, há alguém que detém o poder e há suporte na sociedade. A partir daí, ajusta-se o universo dos direitos. Um pouco como se aprende nas revelações da semana. Ajustam-se os laudos, os documentos, as razões para justificar um delito. E sua própria tipificação. Tudo se move, no calor da política. E a “abstração da regra” soa não muito mais do que o resmungo de quem perdeu. Simplesmente perdeu. Quando observo essas coisas, me vem à lembrança a antiga provocação de Roberto Schwarz sobre as “ideias fora do lugar”, em nossa tradição. Sua referência é tão distante quanto o século XIX. A “disparidade entre a sociedade escravocrata e as ideias do liberalismo europeu”. Mas me soa tremendamente atual. A estranheza de uma elite que enche a boca para falar em democracia, mas aplaude o “deixa que eu dou um jeito” para arrumar provas e fazer o que a Autoridade deseja fazer. Que fala em “garantismo”, mas com a boca torta pelo uso do cachimbo. Em um mundo em que a retórica e sua negação, no universo da democracia liberal, convivem sem problema.

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Talvez por isso minha referência sempre será Eleanor Norton, a advogada negra que em um dia qualquer de 1969, diante da Suprema Corte americana, defendeu os direitos de Clarence Brandenburg, um abjeto líder da KKK. E o fez por entender algo bastante simples: que os direitos dele eram ao mesmo tempo os nossos direitos. Ela o fez em nome de um princípio. Em nome da Constituição. Algo que a “obrigava por vezes a defender pessoas que não me defenderiam”. Essa história sempre me tocou. E digo que sobre isso não alimento lá grandes expectativas no Brasil de hoje. Vejo que já fomos contaminados pelo vírus do ódio e da paixão política, em um país no qual nunca prosperou, de fato, uma tradição liberal-democrática. E por isso a relativização do direito. O truque. O ministro nervoso, o e-mail inventado, o laudo feito sob medida. O abuso, enfim. Tudo que faz tanta gente boa sinceramente desejar ir embora, simplesmente. Largar de mão esta república que parece não ter mais jeito.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

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Publicado em VEJA de 16 de agosto de 2024, edição nº 2906

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