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Fernando Schüler

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O ópio da política

Uma questão de mercado: quem exatamente remunera o bom senso?

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 17 Maio 2025, 08h00

O exagero é uma espécie de estética de nossa época. Dias atrás me dava conta disso, lendo The New York Times. “As forças da desumanização, o autoritarismo, a tecnologia fora de controle”, dizia David Brooks, o colunista pop, “andam junto com um presidente em guerra com as universidades, que destrói o cristianismo fingindo governar em seu nome”. Incrível. Sempre fui fã de Brooks, em especial pelo seu ceticismo e requinte intelectual. E agora? O sujeito tomado pela obsessão política? Na sua visão, Trump seria a “negação dos valores americanos”. A expressão de um “paganismo cultural” feito do culto à “virilidade, ao ego, à fama”, contra todos os bons valores do cristianismo. O problema naquele monte de palavras não é a oposição a um político. O que intriga é a limpidez. A pureza de uma análise isenta de contradição. É óbvio que se pode desgostar de Trump. Suas tarifas, sua política migratória, sua empáfia. Mas a negação dos valores americanos? Quem exatamente está autorizado a falar em nome da sociedade? Trump fez seus primeiros 100 dias confrontando a agenda woke. Há uma clara divisão na cultura americana sobre isso. Quem representaria melhor os valores americanos? O MeToo e os safe spaces, nas universidades, ou a cultura da Primeira Emenda? O cultivo do self-made man nos livros de Horatio Alger ou, quem sabe, os filmes de Clint Eastwood? Tudo isso é arbitrário e engraçado. A contradição é uma graça. Entre muitas razões, porque nos faz parar um pouco e pensar. Trump ganhou com uma margem folgada entre os eleitores religiosos que vão à igreja, de 59% a 40%. Talvez eles não tenham sido avisados sobre o seu paganismo. Ou quem sabe seja Brooks e o Times que sabem das coisas.

Vão aí alguns sinais de nossa pequena era dos extremos. Época em que a seletividade intelectual se tornou um tipo de esporte. Brooks enxerga Biden como um herói da virtude, mas parece não se importar que ele tenha mandado perdoar todos os parentes na reta final do governo. Fala da guerra às universidades, mas dá de ombros para a monocultura ideológica “progressista” que tomou conta daquelas instituições (e não apenas de Harvard). O mesmíssimo poderia ser dito do Brasil. Em uma semana, leio que nos tornamos um tipo de “narcoestado”, dedicado exclusivamente a “roubar”. Do mesmo jeito que passamos alguns anos, no governo passado, lendo que andávamos como a “Alemanha dos anos 30”, à beira do “fascismo”. Como escutei de um velho senador, tempos atrás, a moderação anda fora de moda. Não vende, não dá likes. Vivemos um tempo estranho onde os crentes estão na moda. E os céticos, acabrunhados. Há muitas hipóteses para explicar essas coisas. Uma delas diz que o ambiente digital premia o conflito. Uma pesquisa mostrou que mensagens de confronto, com um ataque ou ofensa ao “outro lado”, têm 2,4 vezes mais chances de engajamento. Nesse prisma, o melhor negócio para um político é ter um bom produtor de vídeos. Linguagem direta, acusatória. E há uma boa chance de o nosso Congresso se transformar em uma grande plataforma do TikTok. Vale o mesmo para um certo jornalismo. Passar uma hora com o dedo em riste, em algum canal, xingando ou aplaudindo o governo, pode ser um ótimo negócio.

O que me fascina nisso tudo é a lógica das comunidades autofabricadas. Em meados dos anos 90, Nicholas Negroponte, do MIT, publicou um artigo dizendo que logo todos teriam acesso a seu próprio daily me. Cada um poderia selecionar as notícias que mais lhe interessava. Negroponte achava isso ótimo, naqueles anos do otimismo tech. Ele só esqueceu que, junto com suas notícias, as pessoas poderiam criar também seu my daily ideas. Selecionar também suas ideias favoritas. De modo que fomos de um mundo analógico, no qual vivíamos em comunidades plurais, feitas de gente pensando de um jeito diferente, para um mundo em que é fácil fabricar comunidades próprias de pensamento, no WhatsApp, nas redes, no consumo digital. E nisso a “visão de túnel”, a permanente autoconfirmação das mesmas ideias, ganha o jogo. De modo que o que era uma virtude popperiana, a busca pela falseabilidade, se torna um tipo de pecado. E é por aí que mesmo bons intelectuais, mesmo Brooks, podem se perder pela linha de fundo.

“Uma questão de mercado: quem exatamente remunera o bom senso?”

Vai aí uma questão de mercado. Quem exatamente remunera o bom senso? Quanto vale o “ponderado”, que sutilmente adquire a imagem do eticamente dúbio? Se você fala a linguagem de uma tribo, terá sua audiência cativa. Mantendo o pensamento crítico, não terá tribo alguma para sustentar suas posições. Uma montanha de gente descobriu esse truque nos canais do YouTube, sendo óbvio o efeito de mimetização na mídia profissional. Meu ponto: tudo isso é muito sedutor, mas é péssimo para uma boa democracia. Se há um consenso na teoria democrática, seja na obra de Rawls, Habermas, Sandel, Amy Gutmann ou James Fishkin, é o de que a democracia supõe um espaço de reflexividade. Uma comunidade de pessoas dispostas a escutar opiniões divergentes e, em especial, mudar ou ajustar suas visões diante de bons argumentos. Vale o mesmo para o bom jornalismo e a atividade intelectual. A tribo quer que você corra sempre na mesma direção. Se você fizer isso, lhe dará seus likes e views. Mas pensar de maneira crítica significa ter a coragem de bater de frente com a tribo.

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O que fez Camus quando azedou suas relações com Sartre e a intelligentsia de Paris, com O Homem Revoltado, no início dos anos 50, quando a moda era aderir ao sovietismo. E logo depois fez Raymond Aron, há setenta anos, com o clássico O Ópio dos Intelectuais. O livro ironizava a frase de Marx sobre a religião como “ópio do povo”. A sugestão era clara: as ideologias, no mundo moderno, haviam tomado o lugar da religião. Os intelectuais seriam os novos clérigos sem Deus, ainda que forrados de história e certezas, “implacáveis com as falhas das democracias liberais, mas prontos a tolerar os piores crimes cometidos em nome de sua própria doutrina”. Hoje sabemos que o ópio é mutante. Nos anos 50 foi o sovietismo. Hoje pode ser a obsessão woke, a adesão desmedida ao MAGA ou a algum líder populista, ou o ódio banal a Trump. Seu objeto pode mudar, mas o modus operandi segue o mesmo: a recusa do contraditório, o esquecimento de que o mundo é imperfeito, ou ainda, que as palavras são imperfeitas para dar conta da realidade. E que por isso é preciso estar disposto a aceitar uma certa solidão. A tentar nunca esquecer, como dizia Aron, “os argumentos dos adversários, a incerteza quanto ao futuro e os erros de seu próprio lado”. Sei que tudo isso anda fora de moda. Problema nenhum. Brooks era melhor quando cultivava saudável ceticismo. E Aron hoje é lembrado sem a montanha de pecados de Sartre. Há uma discreta beleza no cultivo da dúvida, que apenas o tempo vai revelando. E que a certeza infinita sobre quase tudo, lamento dizer, jamais irá entregar.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 16 de maio de 2025, edição nº 2944

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