“Golpe foi soltar o presidiário!”, diz um dos membros do agora famoso grupo dos “golpistas do WhatsApp”. Outro integrante mira no STF: “A Corte age à revelia da Constituição!”, diz e conclui: “Até quando vamos assistir o abuso prevalecer?”. A frase mais grave veio na forma de um desejo: “Prefiro um golpe à volta do PT”. Ele parece falar de variações do modelo chinês, que junta autoritarismo com mercado, e engata: “Ninguém vai deixar de fazer negócios com a gente”. Por fim, alguém arrisca uma digressão whats-filosófica, dizendo que “a espécie humana sempre foi violenta”, e que seria “uma utopia pensar que as coisas sempre se resolvem ‘na boa’”.
É o Brasil em transe. Não por essas frases desconexas, algumas com o lamentável traço autoritário, aliás, ditas aos milhares no universo cacofônico das redes, dos bares, dos clubes, nos jogos de beach tennis Brasil afora. O transe é estarmos em meio a uma campanha presidencial discutindo essas coisas. Mais estranho ainda é que alguém tenha mobilizado o aparato repressivo do Estado, bloqueado contas, quebrado sigilos, em razão dessa fraseologia whatsappiana. Talvez porque deixamos que tudo fosse longe demais. Transformamos em questão de Estado alguém dizer, em um grupo fechado, que sonha com o Brasil governado como uma grande comunidade Osho, ou por um ditador como Trujillo, do romance de Vargas Llosa, ou quem sabe ainda pelos irmãos Castro. Do meu ponto de vista, isso tudo é uma grande bobagem, ainda que seja um direito de as pessoas pensarem assim.
O problema é isso se tornar um crime, sob o ponto de vista do Estado brasileiro. Em primeiro lugar, porque o único ponto de vista aceitável para o Estado é o que está escrito na Constituição e nas leis. E não há rigorosamente nada ali que torne crime algum cidadão manifestar preferência por esse ou aquele modelo político. O que as nossas leis fazem é criminalizar a “ação de grupos armados” contra a ordem constitucional, como está escrito na Constituição, ou “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça”, o governo legitimamente constituído, como se lê no Código Penal.
Nossos legisladores foram sábios. Sua preocupação foi estabelecer limites claros e objetivos para a ação repressiva do Estado sobre os cidadãos. E mais: confiar que os agentes de Estado teriam a sabedoria de não dispor desse poder de modo trivial. Que saberiam distinguir entre um punhado de palavras expressando a preferência de alguém por viver sob uma ditadura, seja ela qual for, em um grupo pessoas, e um chamado à ação subversiva que possa representar um risco crível às instituições. É evidente que nada disso se verifica nesse episódio triste. Mesmo o participante que expressa de maneira mais nítida o seu desejo de ditadura não faz uma ameaça. O que ele faz essencialmente é cogitar, e “não há crime de cogitação”, como explica, elegantemente, o ex-ministro do STF Marco Aurélio Mello.
“A liberdade de expressão não é um bem secundário nas democracias”
A liberdade de expressão não é um bem secundário nas democracias. Não por acaso, os americanos colocaram sua proteção irrestrita como o primeiro princípio da Declaração de Direitos, na Constituição. O.k., somos do Sul, somos latinos, temos duas ditaduras nas costas poluindo nossa cabeça, somos uma democracia precária sob muitos aspectos, e não pertencemos à tradição do Bill of Rights. Tudo isso é verdade. Mas também nós fizemos uma opção pela liberdade de pensamento como um valor essencial na Carta de 1988. Só que agora parecemos ter esquecido. É disso que se trata o presente episódio. Algo que vai além da liberdade de expressão. Não o direito de expressar uma opinião em público, mas de fazê-lo em um espaço privado. Não de falar no Facebook, mas no espaço da casa, do grupo, da mesa de bar. Direito de expressar visões, inclusive, contrárias à Constituição. Ideias que digam, por exemplo: “Não gosto desta Constituição, gostaria de outra, semelhante à da Venezuela ou do Reino do Butão”. Isto pelo fato de que não temos, graças ao bom Deus, uma “Constituição do pensamento” no Brasil. Temos uma Carta ordenando instituições e assegurando direitos, ao invés de dizer o que as pessoas estão tituladas a pensar ou a deixar de pensar.
A modernidade liberal se fez exatamente no reconhecimento dessa fronteira por vezes visível, através das leis, e por vezes invisível, pela força da cultura cívica, entre as esferas pública e privada da vida social. Da esfera da liberdade regulada positivamente pelo Estado, e dos espaços da intimidade, cuja regra é a liberdade negativa, ou como não impedimento externo. A distinção vem do grande Isaiah Berlin. Ele nos lembra que nenhuma sociedade é livre se não souber reconhecer “que há áreas limitadas, onde os homens devem ser invioláveis”. A esfera do gosto, do pensamento, do desejo, da opinião, das crenças. Pois é isso, no fundo, que está em jogo. No Brasil, já admitimos que um órgão de Estado tutele a opinião; aceitamos que puna pessoas em nome da verdade. Agora ensaiamos aceitar que seu poder não se restrinja aos espaços tradicionais da liberdade de expressão, mas se projete sobre as esferas da intimidade. Espaços em que o grande panóptico instalado no coração do Estado parecia não alcançar, mas agora alcança. Na prática, já havíamos admitido o delito de opinião no espaço público. Agora inventamos o delito de opinião no espaço privado.
O resultado é o medo. Algo que me fez lembrar da leitura de um livro monumental: O Fim do Homem Soviético, da premiada escritora russa Svetlana Aleksiévitch. Ela nos conta como as cozinhas russas, durante gerações de famílias soviéticas, funcionaram como refúgio da intimidade. O lugar em que se podia falar dos livros proibidos, das ideias perigosas e, principalmente, “falar mal do governo, e não ter medo”. Tudo com o cuidado de não ter “gente estranha” por perto, com o som ligado na sala, para abafar uma escuta, e com um travesseiro sobre o telefone, por via das dúvidas. Svetlana fala de um tempo absurdo, ao qual as pessoas iam se acostumando. Tomando cuidado, cochichando, aprendendo a driblar o Leviatã bisbilhoteiro. Relendo o seu relato, me dei conta da sorte que temos de viver em uma grande democracia, em que não precisamos cochichar, escondidos na cozinha. Mas também de como tudo pode ser frágil. Sobre como é preciso prestar atenção a certos princípios, para que tudo não escoe pelo ralo, sem a gente sequer perceber.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 31 de agosto de 2022, edição nº 2804