O fim do fim da história
A ideia liberal, diante da brutalidade e do horror, renasce com sua imensa força

“O liberalismo se tornou obsoleto”, disse Putin, tempos atrás. Seu iliberalismo mistura aspectos culturais — a aversão à “diversidade sexual” e ao multiculturalismo — com a negação de traços essenciais das democracias constitucionais. A Rússia foi, desde a transição dos anos 90, “uma democracia ornamental com alma autoritária”, como li de um professor russo. Uma “democracia soberana”, como o próprio Putin gostava de chamar seu regime. Sistema mais propenso a “proteger a maioria do que o direito de minorias”. Putin expressa, por essas ironias da história, o exato oposto do que representou Gorbachev, o arquiteto da grande transição da qual ele mesmo foi o herdeiro. Um líder com a cabeça no século XX, obcecado com os avanços da OTAN e disposto a retomar ao menos uma parte do antigo império soviético.
O primeiro resultado da agressão russa é o medo. Yuval Harari sugere que um eventual sucesso russo na Ucrânia promova uma corrida armamentista global. Mas há um significado mais amplo nisso tudo? Há quem fale no mais duro baque à ordem liberal, e aos próprios fundamentos da democracia liberal, desde o fim da União Soviética. Não acho que exista uma resposta clara. A história está em curso. Putin perdeu a “guerra de opinião”, mas não parece que seja esta a sua maior preocupação.
A crise do liberalismo foi periodicamente anunciada, nas duas últimas décadas. Depois da euforia da virada para os 90, com a queda do muro, com Havel e sua revolução de veludo, o primeiro grande anúncio do fim do mundo liberal foi com o 11 de Setembro. “O mais profundo desafio desde a origem do liberalismo: de uma teologia illiberal revelada”, como disse Judd Owen, à época. Depois tivemos o surgimento da “nova direita” americana, com o governo Bush e o Tea Party. Depois, a grande crise de 2008 e logo o diagnóstico recorrente de que nossas democracias deslizavam ladeira abaixo. Quando Trump chegou ao poder, tudo parecia desmoronar. É certo que tudo isso soa como enorme exagero. A leitura da história exige distanciamento. Mesmo os indicadores sobre a democracia, aparentemente técnicos, são forrados de informações duvidosas e predileções políticas. É preciso cuidado. É possível que vivamos até hoje à sombra da euforia e das expectativas exageradas sobre a nova ordem liberal e democrática, anunciada no pós-queda do Muro de Berlim. À sombra daquela tese fulminante de Fukuyama, de que assistíamos a uma vitória definitiva da democracia liberal e da economia de mercado, no que seria o “fim da história”.
Talvez tenhamos esquecido que a instabilidade pertence à própria natureza das democracias liberais, e que a história contém um elemento de imprevisibilidade. Em nosso tempo, diria que o fato imprevisto não se refere a nenhuma guerra, mas à revolução tecnológica. A “destruição criativa”, pela qual vem passando a democracia, na qual antigas instituições — partidos, sindicatos, mídia convencional — são eclipsadas por formas novas e algo caóticas de representação.
Fukuyama publicou um longo artigo, dias atrás, argumentando que nossa crise diz respeito à própria vitalidade da “ideia liberal”. Esquerda e direita teriam culpa no cartório. De um lado, a cultura “woke”, seu senso de superioridade moral, sua aversão ao contraditório. De outro, a ideia do liberalismo como inimigo dos valores tradicionais. Putin é a caricatura disso, quando diz “que todos sejam felizes (referindo-se ao direito dos gays), mas que isso não ofusque os valores familiares tradicionais de milhões de pessoas que formam a maioria”.
“A ideia liberal, diante da brutalidade e do horror, renasce com sua imensa força”
A tese de Fukuyama: o inimigo da ideia liberal está dentro de casa. Reside em seu ingrediente “antinatural”. A ideia difícil segundo a qual devemos “deliberadamente limitar o alcance da política e celebrar a tolerância das diferentes e opostas visões de mundo”. Essas coisas que fazem todo o sentido quando estamos abaixo da repressão, ou desafiados por um sistema hostil, como na Guerra Fria, mas que logo esquecemos, quando tudo parece estar sob controle e a liberdade parece assegurada. Nos esquecemos de quanto a defesa de certos princípios era importante, logo ali atrás. Afora isso, há o inimigo externo. Larry Diamond observa que a Rússia tem 6 000 ogivas nucleares, mas é a China que representa o maior risco à democracia liberal. Putin é um líder arcaico, mas carece de um “modelo”. Em contrapartida, há um “modelo chinês” a ser exportado. Fundado na retórica de que a China pratica um tipo “diferente de democracia”, um tipo autoritário de capitalismo de Estado capaz de produzir crescimento acelerado, dispensando os “cansativos padrões ocidentais de freios e contrapesos, e sua retórica moral em torno de direitos e liberdades”.
Há um pano de fundo desse argumento: nos convencer de que a democracia é um valor “relativo”. Que há muitas “formas” de praticar a liberdade. Que é possível imaginar uma democracia sem direitos individuais, sem liberdade de expressão, competição eleitoral, poderes independentes. Toda essa parafernália da tradição liberal que o ocidente desenhou, a duras penas. Talvez seja precisamente a essa “parafernália” que precisamos voltar a prestar atenção. E talvez seja essa a grande lição que as ruas destruídas de Kharkiv e Kiev e as imensas filas de refugiados nos contam. Nos ensinam também que o “fim da história” talvez tenha sido um bom insight intelectual com enorme risco histórico: nos fazer acreditar em um mundo destinado à paz e à democracia. “Vivemos tanto tempo dentro da bolha da ordem liberal”, escreveu Robert Kagan, “que perdemos a capacidade de imaginar outro tipo de mundo. Achamos que ele é natural e mesmo inevitável”. Kagan anotou isso há pouco mais de três anos. Putin, por estes dias, nos trouxe com perfeita clareza o sentido de suas palavras.
Desde este país periférico, o Brasil, o pecado que não deveríamos ter cometido é relativizar a agressão. Por muito que nos interessem os fertilizantes russos, cabia uma posição firme relativa a princípios. A verdade triste é que também por aqui vamos sendo seduzidos pelo iliberalismo. Aceitamos relativizar uma agressão explícita, como contra a Ucrânia, como relativizamos ditaduras, à esquerda e à direita, e agora resolvemos relativizar o direito à liberdade de expressão. De ambiguidade em ambiguidade, vamos cedendo o terreno em princípios dos quais não deveríamos abrir mão.
Há lições a aprender disso tudo. Fukuyama diz que talvez estejamos vivendo o “fim do fim da história”. Que há sombras no horizonte. Mas que a bravura dos cidadãos, na Ucrânia, e a solidariedade que despertam, mostra que o “espírito de 1989 permanece vivo”. Que a ideia liberal, diante da brutalidade e do horror, renasce uma vez mais, com sua imensa força.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 16 de março de 2022, edição nº 2780