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O direito de dizer “não”

A liberdade individual deve estar no centro da equação política

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 5 fev 2022, 08h00

“Ainda não estamos maduros para essa questão aí”, tascou Bolsonaro, sobre o projeto da volta dos cassinos no Brasil, que deve ir à votação no Congresso. Me lembrei da dona Santinha, mulher do ex-presidente Dutra. Segundo consta, foi ela, muito carola, que assoprou no ouvido do marido, em 1946, que os cassinos tinham de fechar. “Manda fechar, Eurico, aquilo é só imundície.” Foi o que ele fez. Hoje, quem quer arriscar na roleta pode ir a Livramento e cruzar a fronteira com o Uruguai, onde o povo já amadureceu, ou jogar pela internet, ou ainda fazer uma fezinha no bicho, em algum ponto de Copacabana, onde ninguém incomoda ninguém com essa história de imaturidade.

Caso parecido é o do voto obrigatório. Tempos atrás li um ministro do STF dizendo que “ainda somos uma democracia jovem” e que falta não sei quanto tempo para dar ao nosso cidadão-adolescente a escolha de votar ou deixar de votar. Me surpreendi. De onde vem essa ideia? Já votamos vinte vezes desde a redemocratização, fizemos dois plebiscitos e vamos para nossa nona eleição presidencial. Vamos sair exatamente quando da puberdade política?

Meu caso preferido é o do FGTS. O governo diz: “Vocês têm de ter uma poupança forçada, caso perderem o emprego”. E logo: “Mas quem vai administrar o dinheiro somos nós”. Dia desses fui ver o resultado. Alguém que colocou 250 reais por mês, no ano 2000, teria 76 000, pelo FGTS, no fim de 2016. Com a remuneração da Selic, em papéis que os bancos oferecem por aí, teria 166 000 reais. O governo tungou 90 000 da “poupança forçada” de nosso pacato cidadão. Mas tudo bem. Somos “hipossuficientes” para escolher, não é mesmo? Estes dias alguém me retrucou que não era bem assim, que a taxa de 3% tinha sido boa nestes dois últimos anos, quando os juros estavam perto de 2%. Legal, pensei. O trabalhador fica rezando para o juro cair. Se ficar abaixo de 3%, comemora assando umas costelas. Neste ano, com a Selic a mais de 10%, deu zebra. Melhor dobrar a reza para 2023.

A última onda do paternalismo nacional é “banir o Telegram”. “Se não fizer, vai ser um show de fake news”, leio em uma reportagem. Em outra, leio que o ministro Barroso vai conversar com seus colegas para ver o que fazer. Não acredito nisso. Fico imaginando a conversa: “Tem 50 milhões de brasileiros lá”, metade enganando, metade sendo enganada, temos de proteger essa gente toda”. Brasileiro é assim, não sabe distinguir entre o falso e o verdadeiro, não sabe quem está ameaçando a democracia, se há risco nas urnas eletrônicas, se a Terra é plana, se tem déficit na Previdência. Tem de controlar, não tem jeito. O mais curioso é a naturalidade com que se discute o assunto. “Tem de achar uma saída jurídica para banir isso, senão vão achar que foi censura política.” Foi a melhor que eu li.

Há quem diga que nossa tradição paternalista vem dos tempos da Colônia, do Estado que chegou antes da sociedade, neste imenso continente. Tradição que seguiu, na República dos coronéis, e logo em nossas duas grandes ditaduras, e impregnou nossas leis, nossa Constituição exaustiva, nossos hábitos políticos. Há quem debite tudo à desigualdade. À massa de despossuídos, que corre atrás da sobrevivência, que não faz lobby em Brasília, não tem tempo para abstrações em torno do “estado de direito”, nem força para dizer não a qualquer coisa que venha de cima. Não sei dar a resposta precisa a essa questão. O fato é que a liberdade, o rigor com os direitos individuais, o zelo pelo “contribuinte”, essa figura estranha, ficaram distantes da equação do poder.

A impagável Deirdre McCloskey culpa os economistas. Esses tipos “obcecados em oferecer conselhos utilitários, que em geral não dão a mínima para a liberdade”. No fundo é isso que há em comum nos exemplos que mencionamos. Tira a liberdade do sujeito decidir o que fazer com seu dinheiro que o país vai crescer mais rápido; tira a opção de usar esta ou aquela rede social que vai ser melhor para a democracia. A melhor: tira a liberdade de os pais escolherem a escola dos filhos que vai ser ótimo para a educação. Há algo muito errado aí. Governos deveriam focar em garantir o básico. Direitos fundamentais, incluindo acesso a educação, saúde, renda mínima, e o principal: a igualdade de todos diante da lei. Isso está inscrito desde muito em nosso contrato político.

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“A liberdade individual deve estar no centro da equação política”

O que não está é essa migração malandra do Estado de direito para o Estado-babá. A brutal diferença entre um governo que garante um vale-creche para uma mãe de menor renda escolher onde colocar o filho (como faz a dona da casa onde ela trabalha), e um governo que diz: “A creche que você vai colocar é na rua tal, número tal, e o que você acha ou deixa de achar não está em questão”.

Vai aí o abismo civilizacional brasileiro. Tem um país feito de gente que pode achar alguma coisa e no fim dizer “não”. Que vai ao mercado se defender da precariedade do Estado e seus serviços. E tem outro que não pode. Que vive numa pré-modernidade, numa cidadania pela metade, que gostamos de empurrar para baixo do tapete.

Por vezes isso adquire dimensão trágica. É o caso da Betina, lá de Cruz Alta, no meu Rio Grande do Sul. Betina começou a vomitar e passar mal no domingo depois do Natal. O Rodrigo e a Catiele, seus pais, levaram-na à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do SUS. Entre idas e vindas, só na quinta a Betina foi transferida para o hospital, o que não adiantou muita coisa. Ela precisava de diálise, precisava de uma cirurgia, era fim de ano, não havia profissionais lá para fazer isso. Betina ficou esperando numa cama, a infecção tomando conta, os pais em desespero. E ela indo embora desta vida, enroscada na burocracia do SUS. No sábado à tarde, enquanto o país comemorava o início do novo ano, Betina se foi. Ela só tinha 2 anos e 10 meses.

Se foi porque não tinha escolha. Era a UPA ou nada. Era o “sistema único”, que deveria ter evitado que ela se fosse, ou coisa nenhuma. Fosse filha de classe média, com um plano de saúde razoável, os pais tiravam de lá na segunda meia hora. Betina se foi porque nosso Estado faz-tudo não fez o mínimo que devia ter feito.

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O fato é que fomos nos acostumando. Lemos as histórias tristes do SUS, da escola pública, os números do FGTS, a invasão de nossos direitos à expressão, e vamos dando de ombros. Em parte, porque nunca é bem com a gente; em parte, porque quem paga a maior parte da conta, em regra os mais pobres, não tem força para interferir no jogo. É assim que o fantasma de dona Santinha vai fazendo seu trabalho: a indiferença dos de cima, o silêncio dos de baixo.

O caminho para mudar essas coisas não é fácil, mas sua direção me parece bastante clara: colocar a liberdade individual no centro da equação política brasileira. Garantir às pessoas o direito mais elementar, negado ao Rodrigo e à Catiele, de dizer “não”. Ele é, no fundo, o melhor antídoto à prepotência do Estado. A melhor bússola para dizer a que distância andamos de uma boa sociedade liberal.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2022, edição nº 2775

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