
O Brasil deu um cavalo de pau, em termos de visão de Estado, nos tempos recentes. De uma regra fiscal simples e dura, criada em 2016, vamos a uma regra fiscal complicada e expansionista. Do foco nas privatizações, fomos para o lado oposto. De uma lei rígida de compliance nas estatais, voltamos à compliance quase nenhum. Não se trata, como costumo dizer, do certo e do errado, mas da democracia e suas escolhas. E de uma tensão que vem de longe. Ela surge na transição, passa pelos processos de modernização, nos anos 1990, atravessa o longo período Lula-Dilma, e tem nova inflexão com o processo de impeachment. De um lado, a visão tradicional do Estado “indutor”, ou “protagonista”, como escutei de um animado interlocutor, na outra semana; de outro, uma visão mais próxima ao Estado “regulador”. A disputa em torno do marco do saneamento talvez seja a melhor expressão recente disso tudo.
O livro Power and Progress, lançado ainda agora por Daron Acemoglu e Simon Johnson, pode nos ajudar neste debate. O livro faz uma crítica do laissez-faire e ao que os autores chamam de “techno otimismo” atual. A ideia de que o avanço tecnológico e o livre mercado nos levarão automaticamente à prosperidade. O argumento da dupla diz que isso só acontecerá se houver “escolhas políticas” na direção certa. Isso pode significar coisas um tanto vagas, como “dar poder aos trabalhadores” (a própria tecnologia, como o ChatGPT, não faz exatamente isso?), ou criar tecnologias capazes de gerar “novas ocupações para as pessoas”, em vez da simples automação. Inovações que mantenham empregos nos Estados Unidos, por exemplo, em vez de buscar mão de obra mais em conta em Bangalore ou Bangladesh. Coisas que efetivamente gerem prosperidade, e não bobagens como máquinas de autoatendimento nos supermercados, cujo único efeito, segundo os autores, é destruir preciosos empregos a troco de ninharia.
Deirdre McCloskey, a impagável economista liberal, não deixou barato. “Acemoglu e Johnson acham que a tecnologia é um pacote de balas sortidas”, diz ela, e que cabe ao Estado “selecionar as melhores guloseimas do pacote”. A partir daí, o céu é o limite. Caberá ao governo incentivar os setores da economia capazes com maior “impacto social”, ajustar a educação para ensinar as habilidades “corretas” e “reduzir as desigualdades” que sempre vêm com a inovação tecnológica. É o “novo Leviatã”, diz McCloskey. Os políticos e burocratas seriam mais capazes de tomar decisões do que o mercado, isto é, de “eu e você tomando milhões de decisões, todos os dias”. Como eles saberão disso? Pergunta ela, e responde rápido: “Um sagrado mistério”.
“Prefiro um Estado contido, atento em garantir regras estáveis”
Acemoglu e Johnson teriam sido bem menos otimistas com sua crença nas “escolhas políticas” se observassem o caso brasileiro. Nosso Leviatã, em primeiro lugar, é bastante guloso. Captura 34% da renda nacional, a maior carga tributária do continente. Desde a época da Constituinte, nossa despesa primária foi de 12% a 19% do PIB, tendo permanecida estagnada nossa produtividade, com honrosa exceção do agronegócio. Nesse período, nosso Leviatã tropical produziu coisas impressionantes. Uma delas é o Judiciário proporcionalmente mais caro do Ocidente, segundo os pesquisadores Luciano Ros e Matthew Taylor, ao custo de 1,3% do PIB. No Congresso, cada parlamentar custa 528 vezes a renda média do país. Custo alto, resultados pífios. No Pisa, da OCDE, nossos alunos tiram o 70º lugar em matemática, entre 79 países, levando a uma situação em que praticamente todos que podem, na hora de matricular os filhos, tentam se livrar das “escolhas do Leviatã”.
Nas escolhas econômicas, há coisas curiosas. Ainda nesta semana escutava o vice-presidente Alckmin chamando de “espetacular” o subsídio à indústria automobilística na compra de carros até 120 000 reais. No primeiro fim de semana, dizia ele, foram 320 milhões de reais. Um verdadeiro “feirão do Leviatã”. Para dar uma de chato, fui olhar os números. Cerca de 90% dos brasileiros, segundo o IBGE, ganham abaixo dos 3 500 reais por mês, sendo pífia a chance de comprar um carro de 70, 80 ou 120 000 reais. Então é o seguinte: nosso bom Leviatã, em um fim de semana, tomou do contribuinte um valor correspondente a 533 000 “bolsas-família” e deu de presente para os 10% de brasileiros com maior renda. Valor que daria para fazer com que todos os moradores de rua de São Paulo e arredores deixassem os viadutos e recebessem uma nova chance. Não satisfeito, nosso Leviatã resolveu passar a mão em pouco mais de 1 bilhão de reais ao ano, do contribuinte, para melhorar o Ebitda de nossas empresas aéreas. O ato foi seguido de um incrível anúncio oficial dizendo “Podem fazer as malas!”, e talvez só um “sagrado mistério”, como bem disse McCloskey, explicaria as razões de tamanha generosidade. Tudo três anos depois que o próprio Leviatã havia decidido, na PEC Emergencial, reduzir os incentivos fiscais, hoje na casa dos 4,3% do PIB, para no máximo 2%, em oito anos, assunto sobre o qual nunca mais se ouviu falar.
O curioso é que ainda agora foi publicado um ótimo estudo técnico do Tribunal de Contas da União sobre os incentivos à indústria automobilística, desde o fim dos anos 90, ao custo de 5 bilhões de reais por ano, no período recente, e cujo resultado é basicamente nulo do ponto de vista do desenvolvimento regional e aumento da qualidade de vida nas regiões contempladas. Com o requinte de uma montadora que recebe 34 400 reais ao mês, por emprego, em incentivos federais, mostrando que nosso bom Leviatã, além de generoso, não gosta de fazer contas e tende a esquecer rapidamente seus próprios enganos.
A referência aos moradores de rua, logo acima, pode ter soado um pouco sentimental. Na verdade, não é. Ela toca em um aspecto que por vezes é esquecido sobre as decisões tomadas no mundo real da política. Cidadãos que moram embaixo da ponte não vão à Brasília, não pagam jantares nem financiam campanhas. E é basicamente por isso que continuam lá, distantes das “escolhas da sociedade”. Ao contrário do que acontece com montadoras de veículos e empresas aéreas. De minha parte, na contramão de um Leviatã solto escolhendo guloseimas, prefiro um Estado devidamente contido, atento em garantir regras estáveis para que as pessoas, elas mesmas, façam suas escolhas. Acemoglu e Johnson mencionam o panóptico de Bentham. A máquina infernal em que alguém observava e vigiava a todos, sem ser observado por ninguém. Eis a equação a ser invertida. É o Leviatã, no alto da torre, que deve ser devidamente vigiado. Lembrado, dia após dia, de que sua primeira função é garantir regras estáveis para que as pessoas, e não ele, se dediquem à “busca da felicidade”, como li em algum lugar. É a inversão difícil, por vezes sem graça. E republicana. E, precisamente por isso, aquela na qual vale insistir.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 28 de Junho de 2023, edição nº 2847