Há muito que aprender com as eleições da última semana. Os partidos de esquerda tiveram um resultado pífio e houve um deslocamento do eleitorado em direção a posições mais conservadoras. E saímos com uma cisão nesse universo amplo e difuso que se chama “direita”. As eleições em São Paulo e Curitiba, em especial, deixaram isso claro. Tarcísio de Freitas e Ratinho Jr. podem facilmente ser associados a uma direita moderada e pragmática; Cristina Graeml e uma série de políticos mais diretamente associados a Bolsonaro, a uma direita ideológica ou “identitária”. Por um momento, me lembrei do velho amigo Jorge Castañeda, cientista político mexicano, que dividia a esquerda latino-americana em “carnívoros” e “vegetarianos”. Os primeiros eram o chavismo e o castrismo. Os segundos eram a esquerda bem-comportada de Mujica, no Uruguai, e de Bachelet e Boric, no Chile. Quem sabe agora tenhamos também por aqui nossa direita vegetariana, preocupada com a economia, falando em “frente ampla”, e nossa direita carnívora, focada nos temas da guerra cultural. É possível que todos se encontrem, logo ali adiante, mas não tenho dúvidas de que este será um tema brasileiro nas definições que irão nos levar às eleições de 2026.
Essa nova direita surge na onda da renovação política brasileira, que teve como ponto de inflexão aqueles movimentos de rua de 2013. Ela cresceu nas redes sociais, um espaço não controlado pelos gatekeepers da mídia tradicional. E à margem dos partidos, sindicatos e organizações que historicamente funcionaram como sistemas de filtro nas democracias “analógicas”. A internet deu poder para o cidadão comum, e subitamente descobrimos que o que as pessoas pensavam não era exatamente o que andava na cabeça dos que ocupavam o centro do palco. De uma hora para outra, entrou em cena o “conservador de costumes”, o “liberal na economia”. Quando Gutenberg inventou a prensa, foi a mesma coisa, a diversidade religiosa explodiu na Europa. E do mesmo modo que naquela época, por agora também surge um surto de intolerância. A ideia de que “é preciso calar estes fascistas”, de que é preciso “controlar as redes”. Não por acaso, foi exatamente essa ideia que escutamos da presidente do PT, dias atrás, com a sugestiva frase: “a esquerda vai continuar sendo massacrada” se “a gente não tiver regulação das redes sociais”.
A emergência da nova direita pode ser vista como produto do cansaço com um padrão de polarização que se cristalizou no país ao longo de mais de duas décadas: a oposição entre PT e PSDB. Com um detalhe: o primeiro ganhando, o segundo perdendo. Foram seis eleições. As quatro últimas vencidas pelo PT. O PSDB se tornou um partido perdedor, ideologicamente frágil, negando a própria herança de Fernando Henrique (quem não se lembra daquela camisa de Geraldo Alckmin com as logomarcas das estatais?) e rigorosamente incapaz de engajar ou mobilizar qualquer coisa parecida com uma militância política. Neste quadro, a nova direita surge como um ajuste de mercado. Mercado político, bem entendido. Com uma nova estética, mais agressiva, debochada. Incorporando a nova geração, pautando temas culturais ligados a comportamento e valores (o avesso da cultura woke, fundamentalmente). E de um jeito diferente, em que o centro deixa de ser o partido e passa a ser a rede, o “movimento”, o blogueiro, o influencer, no universo caótico das redes sociais.
Não passa de uma lenda a ideia de que a oposição entre PT e PSDB era um mero teatro, como tanto se escutou por aí, e que ambos os partidos representavam essencialmente a mesma coisa. Se observarmos toda a série de reformas que o país soube fazer, desde o início dos anos 90, veremos que sempre houve duas turmas na política brasileira. Isto vale para o processo de privatizações, nos anos 90, envolvendo a Vale, a Embraer, a telefonia. Vale para o Plano Real, para a Lei de Responsabilidade Fiscal, a criação das agências reguladoras, a quebra do monopólio do petróleo e tudo mais. Após o impeachment de Dilma, esta agenda foi retomada, com o teto de gastos, a lei das estatais, a reforma trabalhista. E teve continuidade, e mesmo se acelerou, sob o comando de Paulo Guedes, com a reforma da Previdência, o marco do saneamento, a autonomia do Banco Central. Em todo esse processo há uma incrível coerência. De um lado, votando a favor, o eixo representado pelos governos FHC, Temer e Bolsonaro; de outro, o eixo associado aos tradicionais partidos de esquerda, votando contra. Não há aqui opinião ou retórica política, mas votos, no Congresso.
“É nos valores republicanos que devemos dobrar a nossa aposta”
Qual seria exatamente a diferença entre carnívoros e vegetarianos? Simplificando um pouco, diria que é a ênfase na guerra cultural. A defesa dos valores tradicionais, o “combate a Paulo Freire” na educação. Nossos pragmáticos tendem a ver as coisas sob um ângulo distinto. O.k. combater a onda woke, mas não é esta a prioridade. O foco é modernizar o Estado, fazer boas PPPs, abrir o mercado, privatizar a Sabesp, fazer valer aquela frase de Mario Covas, em 1989, sobre dar um “choque de capitalismo” no país. A guerra cultural, por vezes, pode levar a episódios curiosos. O campeão, para meu gosto, foi Bruno Engler xingando Fuad Noman por uma passagem de seu romance que descreve um ato de violência sexual. “É literatura, meu rapaz”, basicamente respondeu o prefeito-romancista, balançando os suspensórios. Me lembrou de Flaubert, processado pelas indecências de Madame Bovary. Talvez vá aí uma questão. Nossa nova direita poderia ter um pouco mais de cuidado. Ler Flaubert, por exemplo. E evitar o risco de se tornar, lá pelas tantas, uma caricatura de si mesma.
Há um lado estético nisso tudo. “Não suporto esse sujeito”, escutei de uma amiga, se referindo a Pablo Marçal. Era o mesmo com Bolsonaro. Perguntei sobre o que ela não suportava, exatamente, e a resposta foi rápida: “Tudo”. Piadas de mau gosto, motocicletas, o boné, os rodeios, o tom de voz, as citações “cafonas” da Bíblia. De um artista, por estes dias, li a curiosa tese de que a música sertaneja seria “fascista”. Achei que ele foi contido. É possível que tudo ali seja “fascista”. Em especial o elogio ao “empreendedorismo”, essa “crença absurda na iniciativa individual”, como escutei de uma socióloga um tanto irritada. Exatamente os valores que tanto agradam ao outro lado. A música sertaneja, a iniciativa individual, as citações da Bíblia e o humor politicamente incorreto. Vai aí, definitivamente, um tema sobre o qual não haverá consenso e que a democracia não pode resolver. Ainda bem. Nós que é teremos que aprender a tolerar e conviver com quem pensa diferente.
O fato é que saímos dessas eleições com um mundo político mais diverso, e seria um ótimo momento para nossa elite política recuar de sua “democracia militante”. Encerrar de vez os tais inquéritos, a onda de censura, a aventura das medidas de exceção. Seja qual for a cara de nosso debate político, nos próximos anos, ele deve ser feito em liberdade. Sem um tribunal editando o embate eleitoral, sem jornalistas presos ou banidos por delito de opinião, sem parlamentares com medo de dizer o que pensam no Congresso. É nos valores republicanos, no “juiz fora do jogo”, na vigência dos direitos individuais, que devemos dobrar a nossa aposta. Todo o resto vamos aprender, nesta imensa escola que, ao final do dia, é a própria democracia.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 1º de novembro de 2024, edição nº 2917