Ainda me lembro das férias de verão em que fiquei enfurnado, numa casa de pescador, lendo uma velha edição de Madame Bovary. Fui abduzido por aquele percurso em direção ao abismo, mas ao contrário do que aconteceu com Vargas Llosa, numa experiência parecida (só que mais chique, em Paris), não me apaixonei por Emma Bovary. Senti pena. Não exatamente dela, mas da miséria que ela conta sobre todos nós. E confesso que o que realmente me fascinou foi ler sobre o processo sofrido por Flaubert, pelos pecados de Emma e de toda aquela história. Seu algoz foi o procurador Ernest Pinard, um tipo mordaz, que faria carreira na França bonapartista. A questão fascinante naquilo tudo era: Flaubert seria culpado pela perversão de seus personagens? Pinard não tinha dúvidas. Não era besta de cair na conversa malandra sobre separar ficção e realidade. A ideia de que “a arte devia ser livre”, que não devia ser moralizada, que o escritor era uma coisa, e outra sua criação.
Flaubert escapou por pouco, mas Pinard não desistiu. Estava decidido a ser o grande moralizador da França, e meses depois voltou à carga, dessa vez contra Baudelaire e seu As Flores do Mal. Sua lógica seguiu intacta. Aquele livro era obviamente pecaminoso. Cita os versos mais ofensivos, faz drama, tenta chocar a audiência, e de certo modo consegue. Ele até admite que o autor possa estar sendo irônico, que ele apenas “retrata o mal e seus arrebatamentos”, como disse o próprio Baudelaire, e que tudo aquilo não reflete suas crenças pessoais. Mas como confiar nisso? Como garantir que as pessoas saberiam julgar? A verdade é que era preciso proteger a sociedade, e que por isso caberia ao Ministério Público impor os “limites que não podem ser ultrapassados”.
Na virada para o século XX, a arte foi se emancipando dessa carcaça moral. Um momento óbvio desse caminho sinuoso foi a suprema provocação de Duchamp colocando seu urinol naquela exposição nova-iorquina de 1917. A partir dali ganhou um quê de ridículo perguntar sobre a “função” ou o “sentido” de um objeto artístico. Há muita coisa misturada quando Duchamp diz que “a arte é o que eu disser que é”. Uma hipótese é dizer que minha arte pode ser fake, como de certo modo era não só o urinol, mas a assinatura que ele levava. Outra pode ser que há um espaço próprio para a arte, o museu, o teatro ou o vídeo no YouTube, e que este lugar define o objeto estético. E há ainda a ideia sedutora de que há ali uma performance. Ele vai ali na Quinta Avenida, compra o urinol, assina um nome que lhe der na telha e põe na exposição. O que a partir daí está perfeitamente desobrigado de qualquer narrativa externa ao próprio gesto, à performance, ao objeto. A decisão, em última instância, será do mercado. Se aquilo fará sentido para as pessoas, se elas ficarão irritadas, fascinadas ou quem sabe darão apenas uma sonora gargalhada. De qualquer maneira, a arte se converte no oposto da pregação por Pinard, e o artista é liberto da condição de sentinela moral de alguma coisa. Tudo perfeito. Não haveria mais procuradores investigando peças, versos ou imagens, nem fiscais em teatros e exposições, à procura de algum pecado. Pinard perdeu. Se tornou um tipo arcaico e virtualmente esquecido, na memória triste do século XIX.
“Já fomos um país capaz de rir de si mesmo, mas agora o tempo fechou”
Os ventos agora parecem estar mudando. Por curioso que possa parecer, o espírito do velho procurador parece voltar a nos assombrar. Ele vem, por óbvio, de roupa nova, ajustado à moralidade da nossa época, mas seu sentido é o mesmo: enquadrar a cultura em uma régua moral. Não é difícil perceber essas coisas quando se observa com um pouco mais de calma o debate em torno da censura ao humor no Brasil atual. A história todos conhecem, e diz respeito ao banimento do humorista Léo Lins, obrigado a apagar seus vídeos e proibido de sair de São Paulo por mais de dez dias, sem autorização judicial. Na primeira vez que li aquilo, achei que fosse uma pegadinha, mas me enganei. E o mais interessante: a juíza que determinou a censura agiu perfeitamente amparada pela lei. O Congresso de fato aprovou uma lei agravando as penas para “discriminações” feitas “em contexto de descontração, diversão ou recreação”. E fez mais: deu ao juiz amplo poder para decidir o que define uma minoria, e qual o significado de expressões como “vergonha, medo ou exposição indevida”. A juíza cumpriu seu papel. Fez sua lista de minorias e atendeu a uma justificativa que anima todo o processo: aquelas piadas reproduzem “discursos que hoje são repudiados”. Foi aí que me caiu os butiás dos bolsos, como se diz lá na Campanha. É a mesma lógica das leis limitando a liberdade de expressão na França do século XIX, e que levaram àqueles processos. A proteção da “moral pública”. Os costumes da época, chancelados pela maioria cultural. Ou ao menos o que o Ministério Público da época imaginava ser a maioria cultural.
O interessante foi a rapidez da mudança. Ainda me lembro dos Trapalhões sendo homenageados no Carnaval. Nem eles, com seu humor tosco, nem o Casseta & Planeta e sua arte bem mais crescidinha teriam muita chance no atual Brasil puritano. Já fomos um país capaz de rir de si mesmo, mas agora o tempo fechou. Ainda me lembro de ter defendido a tese da “liberdade da arte” em um debate em Porto Alegre, à época de uma exposição tida como imoral, em um centro cultural da cidade. Disse o que me parecia óbvio, que a arte era frequentemente insuportável, e que quem se sentisse ofendido deveria passar longe da exposição e quem sabe escrever uma crítica pesada no jornal. Não colou, e o detalhe é que eram os “conservadores” que me contestavam na plateia. Agora são os “progressistas” que andam de dedo em riste, correndo atrás dos tribunais para censurar. Ao menos nisso, são perfeitamente iguais. Ambos desejam regular a cultura, ajustar a arte, a linguagem, os costumes a sua visão muito particular de mundo. E suspeito que eles são maioria. É só observar a fúria das redes, os xingamentos ao Fabio Porchat e ao Antonio Tabet, por estes dias, pela defesa de alguns valores que há poucos anos teriam parecido perfeitamente evidentes. O fato é que nosso Zeitgeist, o sentido do pêndulo, de nossa época, se move na direção do controle, não da liberdade. Decidimos novamente moralizar a arte e a cultura. Um Pinard politicamente correto ganharia fácil de um Flaubert ou de um Baudelaire, nos tribunais ou no manicômio digital, nestes tempos ácidos.
De minha parte, prefiro andar na contramão. Na verdade, é um certo olhar liberal que termina sempre meio marginal nesse debate. Mas um dia as pessoas cansam, o mundo vai se tornando sem graça, a quantidade de gente banida vai ficando constrangedora, e o pêndulo muda de novo de direção. É assim que tem sido, ao menos desde a revolução iluminista. Pode demorar, mas a derrota, como aconteceu naquele processo perdido no tempo, será sempre de Pinard e sua virtude. E a vitória de Flaubert, com todos os seus pecados.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 31 de maio de 2023, edição nº 2843