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Fernando Schüler

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A vida não é uma corrida

Será que é possível medir o sucesso a partir de uma mesma régua?

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 23 nov 2024, 08h00

Você já ouviu falar da “falácia de Davos”? É a ideia simples de que quem ganha mais, está no top 1%, é mais inteligente. Achei ótimo esse conceito. Ele corresponde, grosso modo, a uma certa mitologia em torno da meritocracia, segundo a qual “os melhores se dão bem na vida”. O ponto é um grupo de pesquisadores suecos que, no ano passado, publicou uma pesquisa mostrando que isso não é bem assim. Eles analisaram os sucessos na vida de 59 000 homens, comparando suas habilidades cognitivas, medidas quando eram jovens, com sua renda anual, quando adultos. O resultado mostra que até um padrão de 60 000 euros a capacidade cognitiva fazia a diferença. Depois disso, muito pouco. O grupo do top 1% quase nada tinha a ver com o dos mais inteligentes, se pensarmos em termos de habilidades lógicas e intelectuais. A pesquisa termina com um mistério. O que causaria a desigualdade nos estratos mais altos de renda? De onde viria o sucesso, se é que isso pode ser medido de alguma maneira?

Uma hipótese trata do impacto das habilidades não cognitivas. Coisas como “a motivação, a sociabilidade, a criatividade, a disciplina mental e a capacidade física”. Apelando um pouco à filosofia, diria que nossos pesquisadores esqueceram um item essencial: a sorte. Lembro de Hayek perguntando se alguém acha que uma “voz afinada, um rosto bonito, uma mente poderosa” dependem de algum tipo de mérito moral. E quem sabe coisas bem mais fortuitas. Nosso bilionário Eduardo Saverin, por exemplo, que um dia deu de cara com um nerd, no dormitório da faculdade, e emprestou uma grana. Um tal de Zucker­berg. Sorte ou mérito? De minha parte, gosto de ver essa questão ainda sob um outro ângulo: será mesmo que é possível medir o sucesso de alguém a partir de uma mesma régua? A renda, por exemplo? Penso que não. Por um simples motivo: as pessoas são diferentes por razões que vão além das habilidades e da sorte. São diferentes também por suas diversas preferências diante da vida. Há quem queira viver a vida de um Elon Musk, correndo riscos o tempo inteiro; e há quem queira a segurança de um bom emprego, no Banco do Brasil. Há quem queira trabalhar oitenta horas por semana em uma startup, como vejo entre alguns de meus ex-­alunos, e há quem queira morar na Lagoa da Conceição, em Floripa, como fez um velho amigo. Ainda me lembro quando decidi estudar história na faculdade. Muita gente me dizia: não dá dinheiro. De fato, não dava. Muito tempo depois li sobre a história de Jeff Bezos. Ele vivia em Nova York, no mercado financeiro, mas em algum momento decidiu se aventurar. Achou que o mercado digital ia crescer e resolveu abrir a Amazon. Durante muitos anos, ele vendia e eu comprava livros, com meu salário de professor. O resultado é uma “desigualdade” e tanto entre nós dois. Mas a verdade é que, ainda que pareça despeito, faz muito pouco sentido comparar o seu sucesso com o meu. Isso pelo simples fato de que nossos gostos diante da vida sempre foram muito diferentes. E que nós dois nunca estivemos disputando a mesma “corrida da vida”, como tantas vezes leio por aí.

“Será que é possível medir o sucesso a partir de uma mesma régua?”

Vai aí um erro de boa parte das teorias sobre a “desigualdade”. O erro de julgar o sucesso de pessoas, em sua enorme diversidade, com objetivos de vida distintos, pela mesma régua. Em geral, pelo padrão de renda. Isso vale inclusive para pessoas muito parecidas. Os professores Carlos e Roberto, por exemplo. Carlos muito cedo decidiu fazer um concurso e dar aulas em uma escola na periferia. Combinava com seu gosto comunitário, seu completo desinteresse em ficar rico. Tudo além do emprego estável, sem risco de ser posto na rua no fim do ano. Muito diferente de Roberto, um tipo inquieto, que insistiu anos fazendo mestrado, doutorado, concorrendo a bolsas fora do país, até virar professor em uma universidade bacana. No fim escreveu livros, se tornou um tipo conhecido, ganhou um bom dinheiro. Carlos e Roberto existem na vida real. Dia desses eles se encontraram nos trinta anos de formatura. O encontro foi afetivo, apesar da evidente “desigualdade” entre eles no critério de renda. Ou quem sabe também no quesito “notoriedade”. Mas não passa de uma cretinice dizer que isso era um problema. Ou que haveria alguma desigualdade de sucesso entre eles. Carlos e Roberto eram basicamente iguais em um aspecto crucial: a realização humana. Ambos fizeram da vida o que decidiram fazer. Eles simplesmente não estiveram, em nenhum momento, disputando a mesma corrida. Comparar essas coisas a partir de algum critério abstrato, seja renda, seja poder ou notoriedade, no fundo é apenas um sutil menosprezo à infinita variedade de fins e valores que marca, felizmente, a experiência humana.

Além de não fazer lá muito sentido, há um bocado de danos colaterais nessa ideia de ficar se comparando com a vida e o sucesso dos outros. Um deles é o risco de você se enxergar sempre como um perdedor. Isso dado ao fato simples de que cabe muito mais coisas na imaginação humana do que na vida — ela mesma. E não passa de uma tortura pautar a nossa vida por um futuro do pretérito. Por aquilo que ela poderia ser, mas infelizmente não é, se por algum acaso vivêssemos a vida do vizinho. A vida digital piorou essas coisas. “Não vivemos mais em pequenas comunidades”, gosta de provocar Jordan Peterson, “onde você poderia ser o melhor padeiro ou o melhor jogador de basquete”. Vivemos em um mundo no qual o sucesso do Messi e daquele maldito colega de trabalho surge com um clique, a sua frente, a todo momento. E não há muito o que fazer a respeito disso, a não ser cuidar da própria cabeça.

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Aqui, volto a meus dois personagens, Carlos e Roberto. Eles fizeram suas escolhas e obviamente produziram resultados muito distintos. O que eles tinham em comum é o fato óbvio de que ambos tiveram acesso a uma base comum de oportunidades. Pode ser estranho, mas vale o mesmo para mim e Jeff Bezos. Uma base comum não significa uma “igualdade de oportunidades”, porque isso não existe. E não existiria mesmo se fôssemos irmãos siameses. A sociedade deveria se preocupar, eu diria obsessivamente, com isto: a ideia de oferecer a cada um boa base de oportunidades. Similar à que tiveram Carlos e Roberto para fazer suas escolhas. Sobre os destinos humanos, sobre a renda que cada um terá, sobre o fato de que eu seja um professor e Bezos esteja navegando no espaço, tudo isso deveria pertencer ao exercício incomensurável da liberdade humana. No plano individual, vale a conclusão de Jordan Peterson: esqueça o sucesso dos outros. Ou quem sabe aprenda alguma coisa com ele. No mais, trate de “se comparar com o que você foi ontem, e não com o que outra pessoa qualquer é hoje”.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 22 de novembro de 2024, edição nº 2920

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