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Fernando Schüler

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A lição do ministro

Os direitos não podem ser pautados pelas preferências políticas

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 11h53 - Publicado em 1 out 2022, 08h00

Em meio ao barulho eleitoral, uma decisão do ministro André Mendonça passou algo despercebida neste país desatento. Mas não deveria. Trata-se da matéria do UOL sobre as supostas “compras em espécie” de imóveis por parte dos Bolsonaro, censurada por um desembargador do Distrito Federal. Os argumentos do desembargador diziam que a matéria fazia “ilações”, que não era possível concluir sobre a compra dos imóveis aquilo que a matéria concluía, que ela usava dados de uma investigação anulada e que, portanto, o portal havia “excedido o direito de livre informar”. Se ficasse por isso mesmo, seria mais do mesmo. Cansei de escrever sobre o inquérito das fake news e sobre magistrados mandando censurar ou mesmo prender em nome da “verdade” e da “democracia”. Dessa vez a coisa foi diferente. Uma matéria claramente de “oposição” foi garantida por nosso ministro dito como o “mais bolsonarista” de todos, como li em um jornal. Se isso não chama a atenção de ninguém país afora, digo que deveria.

A decisão do ministro Mendonça traz uma boa e uma má notícia. Ele fundamenta sua resolução na icônica ação que, nos idos de 2009, acabou com a “lei de imprensa” no Brasil. Para quem não se lembra, a lei de imprensa era um resquício do regime militar, e foi devidamente extinta pelo STF sob a ideia de que nossa Constituição consagra “a plena liberdade de imprensa, proibitiva de qualquer tipo de censura prévia”. Palavras que hoje parecem ter se perdido na poeira da guerra política. No Brasil atual, a censura prévia corre solta e boa parte da sociedade dá de ombros. Luciano Hang, o empresário dono da Havan, está banido das redes sociais. Alguém faz ideia do porquê? Ele está “previamente” banido de seu direito à expressão. As coisas não funcionam mais como à época da ditadura, em que Chico Buarque deveria enviar previamente uma letra para aprovação do censor. Nos tornamos mais eficientes: proíbe-se que o cidadão se expresse antes da análise de qualquer coisa. É a censura prévia fast track, mais direta e eficiente.

Na parte final de sua decisão, André Mendonça dá o recado mais importante. Ele diz que, em um “estado democrático de direito”, a liberdade de expressão é devida “aos brasileiros de todos os espectros político-ideológicos”. Diz que a censura não tem respaldo na Constituição, “por melhores que sejam as intenções”, e que tudo é ainda mais grave se as restrições vierem do Poder Judiciário, que deveria zelar pelas garantias fundamentais, e não o contrário. São três ideias simples, que não deveriam causar surpresa nenhuma. Ocorre que, do jeito que andamos, elas têm um sabor amargo. Revelam que há uma divergência profunda sobre a liberdade de expressão em nosso mais alto tribunal, sendo provável que a visão do ministro Mendonça seja minoritária. É possível que os demais ministros tomassem a mesma decisão que tomou André Mendonça, mas por razões inteiramente distintas. Poderiam levantar a censura sobre essa matéria, mas não aceitar a tese apresentada por Mendonça: de que não cabe censura, nem tutela do Estado sobre a “verdade”, e que a liberdade de expressão é devida aos brasileiros, sejam eles “conservadores” ou “progressistas”, adeptos dessa ou daquela visão de mundo.

No Brasil recente, permitimos que a nossa democracia escorregasse exatamente na direção oposta dessa visão. Aceitamos que liberdades individuais muito elementares fossem danificadas a pretexto da “defesa da democracia” e do “combate às fake news”. Assistimos passivamente ao surgimento, no coração da República, do embrião de um Estado policial inteiramente estranho a nossa jovem tradição democrática. E o pior: com o respaldo de boa parte dos próprios meios de imprensa, inebriados pela polarização política. Em um país, como bem disse o mestre Sérgio Buarque, avesso às “abstrações do liberalismo” e onde a democracia “sempre foi um lamentável mal-entendido”.

“Os direitos não podem ser pautados pelas preferências políticas”

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Vai aí o lado obscuro de toda essa história. Ele diz respeito a como a decisão do ministro foi tratada na sociedade. Há coisa de dois meses, em uma outra decisão, dessa vez tomada pelo ministro Alexandre de Moraes, foram censurados materiais mencionando a delação premiada de Marcos Valério, com referências a uma suposta relação entre o PT e o PCC. À época, observei que aquela resolução estabelecia uma premissa: colocando-se como “juiz da verdade, nesse caso, o Estado se põe, por efeito lógico, como juiz da verdade em qualquer caso”. Foi exatamente isso que o desembargador de Brasília fez: ele julgou a “veracidade” da matéria. Exerceu seu poder de tutela, sugerindo que o portal não poderia ter feito a “ilação” que fez. No fundo, está aí o dilema brasileiro. Desejamos ou não o Estado de tutela? Ou somos apenas malandros, achando ótimo que esse poder seja exercido só contra os indesejáveis, os errados, os do “outro lado”?

Talvez seja o caso. Nesse episódio triste, grupos de imprensa e opinião que passaram os últimos anos salivando de alegria com toda sorte de censura contra os “alvos corretos”, repetindo catatonicamente que “liberdade de expressão não é um direito absoluto”, subitamente acordaram. Num passe de mágica, lembraram que a “liberdade de expressão é um dos pilares centrais da democracia”. Tudo que haviam solenemente esquecido, quando o “patrimônio imaterial representado pela liberdade de pensamento” dos outros, casualmente seus inimigos, estava escorrendo pelo ralo.

Tempos atrás li um texto provocativo de Anne Applebaum falando da guerra e das ameaças às democracias liberais mundo afora e perguntando se não relaxamos. Se não nos convencemos cedo demais de que as democracias liberais estavam consolidadas e de que não havia mais perigo relevante no horizonte. Ela conclui dizendo não haver nada “natural” em uma ordem liberal. E que teremos de “lutar ferozmente pelos valores e pelas esperanças do liberalismo se quisermos que nossas sociedades abertas continuem existindo”. O texto resume à perfeição o nosso problema: enquanto não entendermos que o mundo dos direitos não admite seletividade, não pode ser pautado pela preferência por este ou aquele lado da briga política, que não cabe ao Estado tutelar a verdade, não teremos uma República digna desse nome. Daí o aprendizado que podemos ter da decisão do ministro André Mendonça.

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Por esta semana, uma matéria no The New York Times se perguntava se, a pretexto da “defesa da democracia”, não terminamos atravessando o samba no Brasil e corroendo as bases de nosso estado de direito. A matéria é gentil. Faz tempo que estamos cruzando uma linha que jamais deveríamos ter cruzado. Dando de ombros a valores que não foram dados pela natureza, que desafiam nossa passionalidade, nossa propensão ao tribalismo e à “vontade de domínio”, na expressão daquele filósofo alemão que não tinha lá grande apreço pela democracia. Valores pelos quais muita gente lutou, no passado recente, e que mesmo por isso deveríamos tratar com um pouco mais de cuidado.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 5 de outubro de 2022, edição nº 2809

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