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Fernando Schüler

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A lição de Tocqueville

Por que esperar que o Estado resolva todos os nossos problemas?

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h56 - Publicado em 28 jan 2023, 08h00
MÉRITO - Alexis de Tocqueville: ideia do benefício do “autogoverno em pequena escala” -
MÉRITO - Alexis de Tocqueville: ideia do benefício do “autogoverno em pequena escala” – (Leemage/Corbis/Getty Images)

“Super-ricos pedem para pagar mais imposto”, li em uma matéria. Achei que era brincadeira, mas não. Era uma carta assinada por mais de 200 endinheirados, que causou frisson nos dias festivos de Davos, na Suíça. “Vocês, nossos representantes, tributem a nós, os ricos, e agora!”, diziam nossos “milionários patriotas”, como o grupo se autodenominou, em meio àquele enorme congestionamento de jatinhos, limusines e pregações contra a desigualdade e o aquecimento global. O mais interessante foram as premissas sustentando a ideia. A primeira foi exposta por Owen Jones, um jornalista pop inglês, dizendo que, “em vez de filantropia, os ricos deveriam dar seu dinheiro ao governo, que sabe melhor o que fazer com ele”. Outra era a crença de que dar mais dinheiro ao Estado seria a melhor maneira de “diminuir a desigualdade”, como constava na carta dos bilionários.

Quando lia essas coisas, pensei no Brasil. Fiquei imaginando se vinte bilionários brasileiros (temos 56, na lista da Forbes) tivessem decidido doar 1 bi, cada um, para o governo. O pessoal lá em Miami, meio entediado, entre uma Pol Roger e outra, lendo o artigo de seus colegas globais, e, num lance de entusiasmo, manda recolher um DARF extra de 1 bi, cada um, para o Tesouro Nacional. Nosso sábio governo agora tem 20 bilhões a mais para reduzir a desigualdade. É basicamente o valor previsto para as emendas de relator, declaradas inconstitucionais pelo STF. Quando isso aconteceu, achei que o Congresso e o novo governo iriam abater o valor das emendas do rombo fiscal aprovado na PEC da Transição. Ledo engano. O dinheiro continuou lá, indo para a conta do déficit público. Como resultado, cada deputado terá 32 milhões em emendas individuais para distribuir. Nossos gabinetes parlamentares funcionarão como pequenos ministérios, direcionando uma montanha de recursos públicos para os municípios de suas bases eleitorais. Podem ser kits de robótica, unidades de saúde, estradas asfaltadas pela metade, um ginásio de grandes proporções para uma cidade de pequeno porte, ou um show sertanejo na festa da cidade. Os exemplos não são inventados. Talvez eles atendam às esperanças de Owen Jones e nossos felizes bilionários de que o governo “sabe o que está fazendo”, mas desconfio que seja apenas uma ilusão.

“Por que esperar que o Estado resolva todos os nossos problemas?”

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Outro ponto que me chamou a atenção na carta dos milionários foi a ideia de que, além de reduzir as desigualdades, com mais dinheiro para os governos, seria possível melhorar a “qualidade da democracia”. Novamente me lembrei do Brasil. No finalzinho do ano, nossos parlamentares decidiram não apenas se autoconceder um generoso aumento, como aumentar também o vencimento dos ministros do STF, que serve como teto salarial do funcionalismo. O valor vai a mais de 46 000 reais. A votação foi “simbólica”, isto é, sem que ninguém saiba quem votou contra ou a favor. Quanto custará? Há quem fale em 2,5 bilhões de reais. Há quem diga que tocar nesses assuntos é mesquinharia. “Tem de pagar bem mesmo”, me diz um colega. Não discordo. Só tem um detalhe: temos o Parlamento proporcionalmente mais caro do planeta, cada parlamentar custando 528 vezes a renda média do trabalhador brasileiro, como mostrou a pesquisa feita por Luciano de Castro, do IMPA, e outros pesquisadores. E somos também o país que mais põe dinheiro em partidos e campanhas eleitorais. Nas últimas eleições, torramos 5 bilhões de reais no fundão eleitoral. Candidatos à reeleição, em regra caciques partidários, com ampla estrutura de campanha, receberam, em média, 1,7 milhão de reais; os novatos, pouco mais de 200 000 reais, e a grande maioria, muito menos. Tudo para gerar maior “equidade” na disputa eleitoral, como por vezes escuto. Os dados são reveladores. Andamos a 1% do PIB acima da média latino-americana em desonerações fiscais. Coisas que vão da Zona Franca de Manaus ao subsídio à compra de caminhões, com todas as consequências sabidas, da tabela do frete à ainda recente “bolsa caminhoneiro”, a um custo de 5 bilhões de reais. Cada cifra dessas nos conta a história do “país da meia-en­trada”, na expressão de Marcos Lisboa. Tenho dúvidas sobre se nossos milionários patriotas, lendo essas coisas, perderiam seu ânimo em pedir mais impostos, ao menos no Brasil. Talvez apostassem no autoengano.

Antes de falar em dar mais dinheiro aos governos, o melhor é perguntar como os governos estão gastando o dinheiro de que dispõem. Nosso maior orçamento setorial é o da saúde, mas se você tiver um problema complicado no joelho vai levar em média quatro anos para uma avaliação cirúrgica pelo SUS. O segundo é o da educação, e nossos alunos da escola pública ocupam as últimas posições no PISA, a cada três anos. Então é preciso cuidado. Antes de fazer graça em Davos, seria interessante saber se a ação do governo, fora do mundo retórico, está mesmo reduzindo a desigualdade.

Outra questão: por que esperar que o Estado resolva todos os nossos problemas, em vez da tomada de iniciativa pelos cidadãos? Eduardo Lyra criou o Gerando Falcões desde o zero, e hoje tem uma capacidade ímpar de transformar comunidades pobres. Ele poderia ter ido reclamar do governo. Talvez tivesse virado um político. A questão vale especialmente para nossos bem-intencionados milionários. Em vez de correr atrás do governo, por que não fazer como Andrew Carnegie, no século XIX: usar o dinheiro e a inteligência para produzir mudanças. É o que nos diz uma das lições de Alexis Tocqueville, em sua famosa viagem à América. Ele se surpreendeu com o que chamou de “autogoverno em pequena escala”. A incrível capacidade que as pessoas tinham em se associar. “Os americanos”, ele diz, associam-se para “fundar escolas, igrejas, difundir livros, construir prisões e hospitais”. Assistiu a milhares de americanos, preocupados com o alcoolismo, conectando-se para promover a abstinência às bebidas. E provocou: “Na França, eles teriam ido exigir que o governo vigiasse as tabernas”. Lá se vão 200 anos, e parecemos não ter aprendido a lição.

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No Brasil, porém, há sinais positivos. Tempos atrás conheci o Inteli, uma faculdade de alta tecnologia, em São Paulo, sem fins lucrativos, criada pela iniciativa de dois líderes empresariais, com a maior parte de alunos bolsistas. Eles teriam feito melhor indo ao governo exigir mais impostos? Não creio. Os exemplos estão aí. O Museu do Ipiranga foi recuperado com mais de 180 milhões de reais oriundos do setor privado, o mesmo acontecendo com a nova fábrica de vacinas do Butantan. O valor somado das doações é menor do que o subsídio dado pelo governo estadual para sustentar pedágios no ano passado. Doações, de um lado; “racionalidade política”, de outro. Deveríamos aprender. Evitar o autoengano do Estado e as ilusões da política. E de quebra dar escala às iniciativas da sociedade civil. De forma que também possamos ser uma terra de doadores, na qual a “arte da associação”, como sugeria Tocqueville, em sua viagem, seja vista como uma virtude, e cultivada desde a formação que todos recebemos.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

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Publicado em VEJA de 1º de fevereiro de 2023, edição nº 2826

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