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A exceção como regra

Estamos de novo no ponto de partida: o plano das boas intenções

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 16 mar 2024, 08h00

Ele foi preso no balaio. O Geraldo. Sobrenome “da Silva”. Morador de rua de Brasília, cidade que não tem propriamente rua. Naquele domingo de janeiro ele andava vagando por lá, curioso. Acabou na rede. Onze meses em cana, com direito a uma tornozeleira eletrônica, no final. Geraldo não tinha “foro por prerrogativa de função”, mas conseguiu a única coisa chique da vida: ser julgado pelo Supremo. Denunciado por “associação criminosa armada, abolição violenta do Estado democrático de direito, tentativa de golpe”. Logo ele, que não tinha nem bem o que comer. Um jornal chamou seu caso de “incrível”. A mim, tudo lembra um pouco uma novela de García Márquez. O sem-teto que iria derrubar o Estado de direito. Bom retrato da maluquice brasileira atual. A ideia vaga do “delito coletivo”, o “crime multitudinário”, no qual você é condenado “por estar ali, no meio da confusão”. No fim, o ministro foi lacônico: “Não há prova suficiente para a condenação”. Por ora, ninguém dá a menor bola. Mais um equívoco, talvez, e bola para frente. Mas desconfio que um dia isso tudo será estudado e descrito com palavras bastante mais duras.

Não acho que um caso como este ajude o país a voltar aos trilhos da “normalidade jurídica”, como começo a ler em editoriais com um tom de impaciência. O ponto é que eles continuam a ser vistos como “acidentes de percurso”. Vale o mesmo para a morte do Clezão, com a diferença de que, no seu caso, não há mais nada a fazer. A espinha dorsal da grande história que fundamenta toda a sorte de “inovações” surgidas desde a criação dos inquéritos sobre fake news, que já vai completando cinco anos, permanece intacta. Na verdade, vai se aprofundando. Seu fundamento é a tese ensaiada desde as eleições de 2018, de que era preciso lançar mão de “medidas excepcionais”, relativizando normas do Estado de direito, para proteger nossa frágil democracia. O aspecto central não é tanto especular sobre o tamanho do “risco” existente à democracia. Mas o tipo de remédio que deveria ser usado, pelas instituições, para lidar com eventuais delitos devidamente tipificados, cometidos por quem quer que seja, e que merecem nem mais, nem menos do que o rigor da lei.

O que o Brasil fez foi recriar uma versão tropical da tese da “democracia militante”, originalmente pensada pelo jurista alemão Karl Loewenstein, nos anos 1930, em uma época na qual o nazismo já havia se consolidado, na Alemanha. A tese de Loewenstein dizia que era preciso “abandonar temporariamente” certos princípios e direitos caros a nossas democracias como forma de “defender a própria democracia, a longo prazo”. Tese sedutora, no contexto da época, mas envolvendo riscos evidentes. E usada, com variações, por regimes autoritários. No Brasil atual, por absurdo que seja, decidimos recauchutar essa tese. A primeira atitude veio em 2019, quando uma revista foi censurada. Houve certa comoção, reação forte, da então oposição, no Congresso, que chegou a pedir o impeachment de um ministro do STF. A publicação não fazia propriamente um “ataque à democracia”, mas a lógica de sua repressão era perfeitamente a mesma do que viria depois. A ideia da “notícia falsa”. Do “ataque às instituições” centrais para a democracia. Coisa que exigia “medidas enérgicas”, mesmo que heterodoxas, como a forma de instalação daqueles inquéritos, para o seu combate. Não muito tempo depois, o alvo migrou para o blogueiro Allan do Santos, acusado de “apontar o dedo médio para prédio do Supremo”. A partir daí, tudo parece ter encontrado seu eixo. E por aí andamos.

A lista do que foi feito é conhecida, ainda que não exista (que eu saiba) um apanhado geral de todas as pessoas censuradas, processadas, presas, “desmonetizadas” ou banidas. Quando a ministra Cármen Lúcia explicou que “excepcionalmente” se censuraria previamente aquele filme feito pela Brasil Paralelo sobre a “facada no Bolsonaro”, à época da campanha eleitoral, talvez tenha produzido a melhor síntese de todo esse processo. Uma mistura de irrelevância (que efeito real teria aquele filme?), imprecisão (qual era mesmo o seu conteúdo?) e pura e simples quebra do “Estado de direito”, dado que a censura prévia é vedada em nossa ordem legal. Há uma certa graça em observar a banalidade da maior parte da repressão praticada no país. A história dos empresários banidos pelo papo furado naquele grupo de Whats­App, o português “interrogado” em Cumbica, a operação que parou a Ponte da Amizade para prender um ameaçador humorista, no Paraguai. A história dos fatos que não “colam” na grande narrativa. E que, para além do elemento anedótico, deixam um rastro obscuro e algo constrangedor. É precisamente aí que entra o Geraldo. O mais completo e verdadeiro “mané”. O tipo que nem sequer um post fará, na internet, defendendo qualquer coisa, e que logo mais será esquecido. Se é que já não o foi. O ponto é que o transe continua.

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“Estamos de novo no ponto de partida: o plano das boas intenções”

Uma vez que se põe em marcha a lógica do “estado de exceção”, é difícil dar marcha a ré. Cria-se uma mecânica, pequenos centros de poder. E o mais importante: cria-se uma mentalidade. Por vezes sutil. Não mais a ideia de que, lá atrás, nossa democracia esteve em risco e que era preciso “agir com energia”, relativizando regras do direito, mas a ideia de que a democracia está em risco. Ou não? Que há o risco do “populismo eletrônico extremista”, a “(super)desordem informacional”, a “extrema direita”, sempre rondando, como cadáver insepulto. E, agora, a “fake news 2.0”, no rastro da inteligência artificial. E que por tudo isso é preciso proteger, em conceito de sabor irônico, o “direito à escolha do eleitor”.

É o que se viu nas últimas semanas. Uma resolução da Justiça Eleitoral tornou as plataformas digitais responsáveis pela não retirada, sem ordem judicial, de conteúdos “fascistas”, de “ódio”, da internet, numa contradição chapada com o que diz o marco civil da internet. Uma lei aprovada no Congresso. E agora a criação de uma espécie de superinstância de monitoramento de qualquer coisa, envolvendo “ameaças”, “desinformação”, “discursos de ódio” e as palavras de sempre. Estamos nós, de novo, no ponto de partida: o plano das boas intenções. Como lá em 2019, tudo é possível. Novos Monarks, novos PCOs, novos Marcos Cintras, novos Geraldos, e quem sabe, tristemente, novos Clezões. Talvez seja nossa vocação como país. Que o “Estado de tutela” se instale em definitivo. Que devamos aceitar o fato da guerra permanente, e logo as práticas sempre surpreendentes da democracia militante, em nossa vida institucional. Cada um pode julgar. O ponto: o que era provisório se tornou permanente. E o que um dia foi exceção, sem cerimônia, vai se transformando em regra. Até quando? Não faço a menor ideia.

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 15 de março de 2024, edição nº 2884

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