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Fernando Schüler

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A era da leveza

Seria possível uma vida totalmente destituída de ‘autenticidade’ ou qualquer profundidade existencial?

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h12 - Publicado em 15 jul 2023, 08h00

Imagine o seguinte. Você se acidenta, ou está com uma doença meio sem cura (bate na madeira) e aí recebe uma opção. Você pode ir até o fim e morrer de morte morrida, como a gente faz hoje, e tudo termina (não para os religiosos, o.k., mas esta é outra questão). Ou então você tem a alternativa de fazer como em Upload, série da Amazon Prime. Sua memória é toda digitalizada (não me perguntem como), e você instantaneamente reaparece em um tipo de metaverso, ou realidade digital. Não é exatamente você, e você sabe que está dentro de um programa, mas há algumas vantagens. A maior delas é que você efetivamente preserva sua consciência, de modo que o “penso, logo existo” cartesiano está garantido. Se sua consciência está lá, então você está lá. A partir daí há outras pequenas vantagens. Você pode escolher onde quer parar (eu cravaria Manhattan Beach, sem pestanejar) e a “interface” é toda muito realista. Tem uns bugs etc., mas nenhuma vida é perfeita, certo? Um amigo meu que entende dessas coisas disse que estamos “perto” de uma coisa assim virar realidade. “Uns 100 anos”, disse ele. “Te larguei”, respondi. “Vou procurar alguém mais otimista.”

A série é obviamente uma simpática caricatura, mas toca em um antigo dilema: seria possível uma vida perfeitamente “leve”, destituída de “autenticidade” ou qualquer profundidade existencial, mas que garantisse um fluxo contínuo de bem-­estar? A questão na hora me levou a Gilles Lipovetsky e seu livro Da Leveza: Rumo a uma Civilização sem Peso. Ele tenta compreender o ethos existencial de nossa cultura, e o título me parece autoexplicativo. Ao contrário do gosto pelo drama e pelos heróis românticos, no século XIX, e do culto da máquina e das grandes utopias, na era industrial, nosso mundo gira em torno do comedimento. Da ideia de viver muito, preservar a saúde, das formas suaves de hedonismo e suas pequenas utopias. O culto do prazer, das amizades, viagens e esportes de fim de semana. Das séries da TV e do trabalho com menos estresse, tudo devidamente temperado com algum “senso de propósito”. Me parece ótimo tudo isso, e coerente com nossa época que viu dobrar a expectativa de vida, em pouco mais de um século. Não é nada parecido, por óbvio, com a utopia radical de Upload. Mas soa como algum lugar no meio do caminho.

É o oposto do que pregou Zaratustra, o profeta nietzschiano, ao povo reunido na praça, depois de descer das montanhas. “Eu vos anuncio o “super-homem”, disse. “O homem é algo a ser superado”, vaticina, e é recebido com uma gargalhada. Em um certo momento, apresenta o seu avesso: o “último homem”. O homem pequeno, mas que “tem a vida mais longa”. O tipo medíocre, que logo será esquecido, que “tem seu pequeno prazer de dia e seu pequeno prazer à noite”, mas “sempre respeitando a saúde”. É uma espécie de “pulga”, que saltita imaginando ter “descoberto a felicidade”. O profeta desdenha, mas a multidão vai na direção oposta: “Nos dê este último homem, Zaratustra!”. E o profeta se entristece.

A cena é um prenúncio de nossa época. A multidão, vamos convir, tem boas razões para fazer sua escolha. Afinal, qual seria mesmo a vantagem do “super-homem”? O tipo capaz de “afetar a história indefinidamente”, quem sabe um Rachmaninoff, depressivo, buscando forças de não sei onde para compor o seu Concerto em Lá Menor, que assisti dias atrás, na Sala São Paulo, produzindo, 120 anos depois, o mesmo tremor e arrebatamento nas pessoas que possivelmente produzirá por gerações e gerações. Ou quem sabe um Napoleão, um dos heróis de Nietzsche, saindo da Córsega como um zé-ninguém e redesenhando o mapa europeu. Ou um Goethe, capaz de “redefinir a cultura alemã”. Tudo realmente extraordinário, mas cá entre nós, além de complicado e improvável, uma enorme pretensão.

Nietzsche desprezava o seu “último homem”, um tipo que “torna tudo pequeno”, e sob certo aspecto reaparece quatro décadas depois no “homem-massa”, de Ortega y Gasset. O “homem sem nobreza, carente de um “dentro”, que só tem apetites, que crê que só tem direitos, nunca obrigações.” O sujeito que estava aí para ser salvo, ou como as pulgas de Nietzsche, ou ao menos “ensinado” por “minorias seletas” feitas de intelectuais, artistas, políticos “que não apartassem a razão da vida”. Vai aí uma recorrência aristocrática e um tanto pretensiosa da visão dos intelectuais sobre o homem comum. De minha parte, digo o seguinte: o “último homem” ganhou o jogo. Sua vitória se dá com a afirmação da cultura do bem-­estar, a partir ao menos da segunda metade do século XX. Nada desse negócio de viver à beira do abismo, fazer drama e morrer cedo. Nada do apelo romântico, tão caro ao século XIX, quem sabe forjado pela memória de Napoleão, pela sedução fatal de Lord Byron e sua vida extrema, sua morte heroica e tuberculosa. Ou da loucura de um Julien Sorel, o personagem inventado por Stendhal “para mostrar que um homem que morre no cadafalso pode representar o gênio e a força da vontade vencendo a mediocridade”, como definiu Jacques Barzun.

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“Seria possível uma vida totalmente destituída de ‘autenticidade’?”

Se alguém quiser ir por este caminho, o.k., mas suspeito que irá solitário. A multidão, definitivamente, está com o último homem. O homem que deseja viver bastante, com algum tempero de baixo risco. O tipo que “mergulha no Mediterrâneo e diz que tudo está bem”, na ótima definição que escutei de Luc Ferry. De minha parte, acho que faz todo o sentido. Em primeiro lugar porque efetivamente vivemos mais. A expectativa de vida foi de 40 para perto de 80 anos, de 1900 para cá, e vai continuar aumentando. Li que Peter Thiel contratou uma empresa de criogenia, e sabe-se lá se não vai voltar um dia, e viver infinitamente. Então parece fazer todo o sentido a aposta nas “paixões suaves”, praticadas com o devido cuidado, em um mundo que abre cada vez menos espaço para um nobre inglês depravado como Byron, ou uma figura como Napoleão só serve para atrair algum turismo, naquela tumba algo démodé, no Les Invalides.

É aí que voltamos ao Upload e sua caricatura da vida sem “transcendência”. Um mundo em que podemos visitar o Titanic, no fundo do mar, embarcar em um passeio espacial, com o Jeff Bezos, ou viver uma vida filosófica, quem sabe com o próprio Nietzsche, em Sils-Maria. Mundo em que a própria experiência da “autenticidade”, pode ser adquirida, sem muito drama. Quem sabe seja este nosso destino, anunciado não por Zaratustra, mas pela multidão que fazia troça do profeta, naquela praça. A praça do mercado, das trocas cotidianas, das pequenas utopias sem peso. Da vida que não deseja erguer nenhum império, afetar a história ou morrer com algum heroísmo. Esta trilha sem um fim aparente, feita de grandes perguntas sem resposta, na qual vamos caminhando, caminhando…

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 19 de julho de 2023, edição nº 2850

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