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Felipe Moura Brasil

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Análises irreverentes dos fatos essenciais de política e cultura no Brasil e no resto do mundo, com base na regra de Lima Barreto: "Troça e simplesmente troça, para que tudo caia pelo ridículo".
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O mundo inteiro está cheio de todo mundo

Por Felipe Moura Brasil Atualizado em 31 jul 2020, 04h32 - Publicado em 31 jan 2014, 15h31

CarsonCNNTapperA pedidos de uma leitora e também porque o mencionarei mais uma vez no próximo post, trago para este blog na VEJA meu artigo de 11 de julho de 2013 sobre o ódio brasileiro à inteligência, o culto à ignorância, a incultura dos nossos especialistas e a cultura do coitadismo, em contraste com a história inspiradora do dr. Ben Carson.

1.

Dois irmãos negros comem pipoca assistindo à televisão. A mãe chega, atravessa a sala e desliga o aparelho. Eles protestam.

MÃE: Vocês assistem demais à TV.
FILHO 1: Não tanto assim.
FILHO 2: Não mais do que todo mundo.
MÃE: Não se preocupe com todo mundo. O mundo inteiro está cheio de todo mundo.

Para desespero dos filhos, ela diz que, de agora em diante, eles terão de escolher dois programas por semana e só poderão vê-los depois de terminar o dever de casa, sendo que, no tempo livre, terão de ir à biblioteca escolher dois livros e entregar a ela, no fim de cada semana, relatórios escritos sobre ambos.

O desespero dos filhos aumenta e a mãe se sai com mais um discurso memorável:

— Por que vocês perdem tanto tempo assistindo à TV? Se vocês usassem esse tempo para desenvolver os talentos que Deus lhes deu, não demoraria muito tempo para que as pessoas assistissem a vocês na TV.

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2.

A cena acima é de “Mãos talentosas” (“Gifted hands”), o filme — disponível dublado ou com legendas em espanhol no Youtube — sobre a história real do dr. Benjamin Carson, o filho 1 interpretado, quando adulto, por Cuba Gooding Jr.. Assista. O dr. Ben Carson, como é chamado nos EUA, veio de uma família negra e pobre, era o pior aluno da turma no ensino fundamental e sofria gozações dos colegas por sua suposta burrice. Hoje é o melhor neurocirurgião pediátrico do mundo, o primeiro médico a separar com sucesso gêmeos siameses unidos pela cabeça.

Em uma de suas muitas aparições reais na TV, multiplicadas principalmente após ter tido a coragem de propor uma alternativa aos princípios do governo Obama em um discurso [legendado aqui e no fim do post] contra o patrulhamento “politicamente correto” dado a dois passos do presidente — para o desespero de seus assessores e também da mídia esquerdista, incumbida por natureza de abafar o carisma de qualquer negro que venceu na vida por seus próprios méritos e se opõe ao coitadismo racial —, ele lembrou a frase da mãe, Sonya, sobre um dia ser visto exatamente ali e disse sorrindo [aos 7 minutos] como quem cumpre a profecia no ato: “Hi, everybody.

3.

Sonya Carson, diria eu, foi para Benjamin uma Dostoiévski analfabeta. Em carta a Mlle. Gerassímova de março de 1877, o escritor russo recomendava que ela adiasse a entrada na Escola Normal de Medicina Para Mulheres para se ocupar primeiro de sua educação geral, sem a qual acabaria se juntando àqueles que só fazem mal à própria profissão: “É que simplesmente a maioria de nossos especialistas são pessoas de educação chocantemente precária. Em outras terras é bastante diferente: lá encontramos um Humboldt ou um Claude Bernard, pessoas com grandes ideias, grande cultura e conhecimento para além de seu campo de atuação. Mas, entre nós, mesmo pessoas de talento são incrivelmente pouco educadas.”

Com uma autoridade materna cada vez mais rara nesses tempos em que os pais acreditam educar os filhos à base do “vamos combinar”, a sra. Carson, ao mesmo tempo que salvou Benjamin da palermice absoluta e da zombaria dos colegas, também antecipou boa parte da educação geral do futuro médico, evitando que ele se tornasse um especialista inculto como os da Rússia do fim do século XIX descritos por Dostoiévski, ou também presunçoso, como os do Brasil do início do século XX satirizados por Lima Barreto — sempre atualíssimo.

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No conto “Harakashy e as escolas de Java” (lê-se: do Brasil), o escritor mulato explicava que os nossos sábios eram aqueles que fugiam dos laboratórios e dos livros: “Basta que um sujeito tenha aprendido um pouco de álgebra ou folheado um compêndio de anatomia, para se julgar cientista e se encher de um profundo desdém por toda a gente, sobretudo pelos literatos ou poetas. Contudo todos desse gênero querem sê-lo e, em geral, são péssimos.” A mentalidade geral brasileira, tão bem descrita por Lima Barreto, como já apontou Olavo de Carvalho, segue a das vizinhas fofoqueiras diante da biblioteca do major Quaresma: “Para quê tanto livro, se não é nem bacharel?” “Que, em contrapartida”, diria o filósofo, “faltem livros nas estantes dos bacharéis e doutores, onde abundam garrafas de uísque e fotos de viagens internacionais, é coisa que não ofende nem choca a alma nacional.”

[Meu trecho favorito daquele conto, no entanto, é mesmo sobre a nossa medicina: “O tratamento geralmente empregado é o do vestuário médico. Consiste ele em usar o doutor certo traje para curar certa moléstia. Para sarar bexigas, o médico vai em ceroulas; para congestão de fígado, sobrecasaca e cartola; para tuberculose, tanga e chapéu de palha de coco; antraz, de casaca, etc., etc.”]

Uma prova aliás de que a literatura barretiana continua atualíssima, em sua sátira do ódio à inteligência neuroticamente compensado pelo culto devoto a títulos, honrarias e demais aparências, é o artigo recente de Fernando Reinach, “Darwin e a prática da ‘Salami Science’”, no qual o autor lamenta que o objetivo da ciência nacional seja agora publicar artigos fatiados como salame no maior número possível de revistas especializadas: “No Laboratório de Biologia Molecular, nossos ídolos eram os cinco prêmios Nobel do prédio. Publicar muitos artigos indicava falta de rigor intelectual. (…) Você se tornaria um cientista de respeito se o esforço de uma vida pudesse ser resumido em uma frase: Ele descobriu… Os três pontinhos teriam de ser uma ou duas palavras: a estrutura do DNA (Watson e Crick), a estrutura das proteínas (Max Perutz), a teoria da Relatividade (Einstein). (…) Hoje, nas melhores universidades do Brasil, (…) a maioria está preocupada com quantos trabalhos publicou no último ano — e onde.”

A “descoberta” do dr. Carson talvez não possa ser, analogamente, resumida em uma ou duas palavras, mas creio que as doze que utilizei lá em cima para apresentá-lo — “o primeiro médico a separar com sucesso gêmeos siameses unidos pela cabeça” — dizem alguma coisa sobre o seu rigor intelectual e o grupo em que ele está.

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Se nem sequer a literatura de Lima Barreto escapou de certo vitimismo, não necessariamente o de raça, mas aquele “no qual as personagens às vezes até conseguem captar a medida de responsabilidade que tiveram em seus destinos, mas sem jamais lograr verdadeiras mudanças”, como escreveu o crítico literário Rodrigo Gurgel, a mãe do neurocirurgião pediátrico jamais permitiu que ele seguisse nesse caminho, à medida que desenvolveu no filho o hábito e até a obrigação moral de encontrar a solução para os seus próprios problemas, sem descontá-lo em mais ninguém, nem exigir compensações descabidas; o que, somado não apenas ao conhecimento adquirido, mas à imaginação e à criatividade desenvolvidas pela leitura, bem como ao senso cristão de responsabilidade pessoal, impulsiona qualquer cérebro ao menos na direção das grandes mudanças e realizações.

Hoje, ninguém precisa desenvolver os talentos que Deus lhe deu para aparecer na TV, principalmente a brasileira; e se o talento do sujeito ainda for intelectual, a TV será mesmo o último lugar onde ele vai aparecer, o que, no fim das contas, é apenas mais um motivo para desligá-la. A TV brasileira é a mãe marxista que manda até seus filhos burgueses irem às ruas exigir tudo do Estado, menos uma biblioteca não marxista para a qual mandá-los, a fim de que não sejam tão incultos e presunçosos.

O tamanho da falta que uma figura como o dr. Ben Carson faz no ambiente cultural brasileiro — e uma mãe como a sua nas famílias pobres e ricas do país — é tão imenso e imensurável que nada mais me resta senão expor o seu exemplo, bem como algumas daquelas suas opiniões que, vindo de quem vem e da maneira simples, respeitosa e inspiradora com que pregam uma mudança de atitude das pessoas em relação à vida, estimulando a confiança em seus potenciais, ao invés da “esperança” de que alguém as trate como coitadinhas, causam um verdadeiro curto-circuito na esquerda americana, que não pode simplesmente demonizá-lo como racista ou elitista sem cair no ridículo ululante.

Como disse o radialista Rush Limbaugh: “O dr. Carson tem uma história de sucesso vindo do nada, que o Partido Democrata diz não ser possível nos EUA. Essa história os amedronta porque se impõe como contraste gritante à mensagem deles não só aos afroamericanos, mas a todas as pessoas. O Partido Democrata não quer que as pessoas pensem que se tornar Ben Carson é possível nos EUA. É injusto demais. É imoral demais. Não há maneira alguma pela qual um sujeito negro poderia se tornar tão bom e tão poderoso; não por si só. Ele é uma ameaça a tudo isto.”

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Uma ameaça a todo um modo de encarar as coisas que também se tornou natural aqui no país do fingimento eterno e da educação chocantemente precária.

Cientistas, médicos, empresários, professores, negros, gays, pobres, mulheres, universitários, índios, parece que ainda estão todos na mesma sala, comendo pipoca, assistindo à TV. O Brasil inteiro está cheio de todo mundo. E num país onde todo mundo se deixa rebaixar ao nível de todo mundo, todo mundo — por mais dinheiro que ganhe — acaba não sendo, nem ajudando ninguém.

Felipe Moura Brasilhttps://veja.abril.com.br/blog/felipe-moura-brasil

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