CRÔNICA – Bate, bate, bate na porta do filho
Pais e adolescente conversam sobre música, literatura e Prêmio Nobel a Bob Dylan

A mãe passa pelo corredor e vê o filho adolescente, de fone nos ouvidos, simulando um solo de guitarra com os braços, no meio do quarto.
– Já leu o livro do mês?
– O quê?
Ela puxa o fone.
– O romance de formação que seu pai indicou: já leu?
– Ah, o Bidu…
– Bildungsroman.
– Isso.
– O tipo de romance em que é narrado o processo de desenvolvimento físico, moral, psicológico, estético, social ou político de um personagem desde a infância ou a sua idade até…
– …até virar uma mãe que tira o fone da cabeça do filho no auge de “Knockin’ on Heaven’s Door”!?
– Olha a malcriação… Leu ou não leu?
– Por que diabos eu tenho de ler livros, se Bob Dylan ganha Prêmio Nobel de Literatura?
– Santo Deus…
– Eu estava aqui amarradão “lendo” a versão original de 1965 para comparar com a da Avril Lavigne e você interrompeu a “leitura”!
– Avril quem? Essa música não era do Guns N’ Roses?
– O Guns regravou em 1991; a Avril, em 2003. Mas o “escritor” é o Dylan!
– O COM-PO-SI-TOR, você quer dizer.
– O “PO-E-TA”!
– O LE-TRIS-TA. “O Guns”, sim, é da minha época.
– Arrá! Você também “lia” o Guns!
– Na minha época, meu filho, a gente ES-CU-TA-VA. Aliás, seu pai e eu nos conhecemos num show do Guns no Rio…
– Não falei? Não falei? Isto, sim, é romance! Devolve o meu fone!
A mãe não devolve o fone, então o filho puxa o fio para retirá-lo do computador e a música estoura nas alturas.
– “Knock-knock-knockin’ on heaven’s door…”
Ele canta, solando novamente no ar.
A mãe rapidamente diminui o volume e traduz a letra como na versão de Zé Ramalho, mas sem melodia:
– “Bate, bate, bate na porta do Céu” virou literatura agora?
– Ah, mãe, você tem de entender o contexto. A música, quer dizer, essa OBRA foi produzida para o filme “Pat Garrett e Billy the Kid”, de 1973. É a última súplica de um xerife.
– Para mim, continua sendo “bate, bate, bate”-cabeça.
– E você bem que gostava de bater cabeça com o papai, né!?
– Meu filho, gostar é outra CA-TE-GO-RI-A. Estamos falando do NE-CES-SÁ-RIO aprendizado existencial e intelectual a partir de obras verdadeiramente literárias que expressam a experiência humana em toda a sua complexidade.
– Uau, chorei.
– Ah, meu filho, você está tão Holden Caufeld…
– Holden quem?
– Caufeld, o protagonista do livro que seu pai lhe indicou.
– “O apanhador”…
– …no campo de centeio”.
– Whatever.
– Vocês seriam ótimos amigos.
– Ele gosta do Dylan?
– Eu lembro mais do que ele não gosta: de quem repete a mesma coisa depois que a gente já concordou na primeira vez, quem boceja quando está pedindo à gente um grande favor, quem acha que vai parecer viado se não quebrar uns quarenta dedos da mão da gente na hora de ser apresentado, quem diz que o café está pronto e não está pronto coisa nenhuma, e mais um bocado de aporrinhações que só lendo. Ele não gosta de muita coisa, inclusive que dele se diga isso.
– Duvido que ele gostasse de ler livros, então.
– Sabe o que ele dizia? “Bom mesmo é o livro que quando a gente acaba de ler fica querendo ser um grande amigo do autor, para se poder telefonar para ele toda vez que der vontade”.
– Hum. E o autor está vivo?
– Não, J. D. Salinger morreu em 2010, aos 91 anos.
– Então não adianta. Para o Dylan, eu ainda posso ligar.
O pai entra no quarto.
– Alô, alô.
A mãe quase morre de susto.
– Santo Deus… Não ouvi você chegar.
– Eu entrei em casa quando o som aumentou. O que está havendo?
– O Prêmio Nobel tirou mais um parafuso da cabeça do seu filho.
O pai examina a cabeça do filho.
– Com essa cabeleira, fica difícil verificar.
– Ele agora está convicto de que não precisa ler livros, porque rock’n roll ganhou status literário, sabe? Basta ouvir Bob Dylan. E como qualquer músico pode ser o próximo…
– Entendo. E não começou a ler o livro que indiquei?
– É sobre um moleque chato que reclama de tudo, igualzinho à mamãe.
– Olha a malcriação…
– Acho que ela se identifica, sabe?
A mãe entrega o fone ao marido, como se entregasse o filho.
– É todo seu.
Ela sai e fecha a porta.
Vai até a cozinha, pega a garrafa d’água na geladeira, serve-se no copo e bebe. Relembra o show do Guns, o futuro marido com uma imagem do Bob Dylan na camisa, aproximando-se do grupo dela, cantando “Knockin’ on Heaven’s Door”.
O som aumenta e ela já não distingue mais se ele vem das duas gerações de roqueiros no quarto ou da sua lembrança.
Ela apenas sorri, solando no ar:
“It’s getting dark, too dark to see…”
Felipe Moura Brasil ⎯ https://veja.abril.com.br/blog/felipe-moura-brasil
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