Zona de Interesse: indicado ao Oscar choca com olhar sobre família nazista
Longa traz história real perturbadora e acachapante
Numa paisagem bucólica, a família desfruta de uma tarde adorável e ensolarada à beira de um rio. Os sons reconfortantes da natureza embalam o momento de lazer de pai, mãe e cinco filhos na ampla casa de campo onde vivem. Mas, enquanto eles transitam pelos cômodos da residência ou pelo quintal ornado por um belo jardim, piscina e uma enorme estufa, a calmaria do som ambiente dá lugar a barulhos angustiantes: ora abafados e distantes, ora mais intensos, disparos de armas e gritos de ódio e de dor se fazem ouvir do outro lado do muro que divide terreno com a casa. O clã, porém, age com perturbadora indiferença aos ruídos da vizinhança. O que logo se explica: os personagens do filme Zona de Interesse (The Zone of Interest; Estados Unidos/Reino Unido/Polônia; 2023), que estreia no país na quinta-feira, 15, são um comandante nazista, sua esposa e prole — que moram a poucos metros de Auschwitz, campo de extermínio onde 1,1 milhão de vidas foram ceifadas no Holocausto.
Sem nenhuma cena de violência explícita ou dentro do campo, o longa indicado em cinco categorias do Oscar (veja abaixo) oferece uma visão rara e desconfortável da tenebrosa II Guerra. Ao mirar o dia a dia dos nazistas em vez de olhar o sofrimento das vítimas, recurso explorado à exaustão pelo cinema, o diretor inglês Jonathan Glazer, que é judeu, toca em um ponto que serve de alerta: se uma família comum é capaz de conviver impassível diante da mais inominável das atrocidades, logo, a monstruosidade não seria uma anomalia fortuita, mas sim uma característica humana — e que pode, a qualquer momento, vir à tona. A atualidade da reflexão foi um impulso para Glazer adaptar o livro homônimo do escritor inglês Martin Amis (1949-2023), publicado em 2014 e inspirado no casal Rudolf e Hedwig Höss — ele comandou por anos Auschwitz, na Polônia, e foi promovido a supervisor de outros campos por sua frieza e inventividade para matar. O pai do diretor, incomodado com o desejo do filho de “ressuscitar” uma família tão cruel no cinema, sugeriu que ele os deixasse apodrecer no passado. Glazer, que demorou dez anos para tirar o filme do papel — e notou sua urgência frente à atual ascensão da extrema direita —, respondeu: “Eu adoraria fazer isso, mas essa história não é passado”.
Após o fim da guerra, instaurou-se um silêncio simbólico entre muitos judeus que escaparam da morte, traumatizados pelos horrores sofridos. De outro lado, simpatizantes do nazismo passaram a questionar o quão verdadeiro era o relato de sobreviventes como o escritor Primo Levi (1919-1987), que destrinchou na literatura a vida em Auschwitz. Em 1978, a minissérie Holocausto, com Meryl Streep, mudou o jogo: a produção esmiuçou de forma inédita e gráfica o modus operandi dos campos. O impacto foi tão grande que o título do programa se impôs como o principal termo para se referir ao genocídio de judeus pelos nazistas. Hoje um subgênero do cinema, as tramas sobre o Holocausto já exploraram pontos de vista variados (leia abaixo). Nenhum se compara, em potência, a Zona de Interesse.
A lista de Schindler (Edição especial)
Interpretados pelos alemães Christian Friedel e Sandra Hüller (ela indicada ao Oscar de atriz por outro filme, o francês Anatomia de uma Queda), Rudolf e Hedwig acreditam merecer o paraíso que construíram para si na zona de interesse — nome dado aos terrenos nos arredores dos campos. Usufruindo de joias, dinheiro e roupas dos judeus presos, eles incorporam as promessas de Hitler de prosperidade para os arianos. Com o intuito de humanizá-los, mas sem desenvolver empatia por eles, o diretor filma de forma distante e original: Glazer escondeu câmeras pela casa e acompanhou as cenas do lado de fora. Não há closes, nem vislumbres de arrependimento. Rudolf é um bom pai. Hedwig, uma dona de casa comum. Os Höss não são inerentemente malvados.
‘É isto um homem?’, de Primo Levi
Eles são, em suma, a tradução exemplar da banalidade do mal descrita por Hannah Arendt: segundo a filósofa, quando a maldade é incorporada à rotina, sem que haja alguma reflexão, ela se torna trivial, fazendo com que os criminosos se vejam inocentes. Como contraponto de esperança, cenas em preto e branco mostram uma empregada que escondia comida no campo. Em 1947, Rudolf foi enforcado em Auschwitz. A esposa escapou, garantindo não saber das atrocidades ao lado da própria casa — uma mentira típica de quem é cego ao horror dentro de si.
Olhares sobre o holocausto
Quatro filmes que observaram, de formas distintas, a tragédia do genocídio judeu
A LISTA DE SCHINDLER
Clássico de Steven Spielberg, o filme de 1993 mescla cenas violentas dos campos com ações do empresário alemão Oskar Schindler, que salvou judeus da morte ao empregá-los em sua fábrica
A VIDA É BELA
Dirigido e protagonizado por Roberto Benigni, o filme italiano de 1997 mostra um pai que, levado com o filho a um campo de concentração, distrai a criança inventando histórias e fábulas, como se tudo ali fosse uma brincadeira
O MENINO DO PIJAMA LISTRADO
Baseado no livro de mesmo nome, o filme de 2008 segue dois meninos que ficam amigos através da cerca de um campo. Sem entender a crueldade dos adultos, frente a frente eles se veem como iguais.
O FILHO DE SAUL
Do diretor húngaro László Nemes, a produção de 2015 choca ao seguir de perto por um dia um judeu obrigado a trabalhar na câmara de gás — um recorte devastador, com o enquadramento colado nas expressões do elenco
Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2024, edição nº 2879