Trisal com Zendaya e sexo lésbico: as novas donas do prazer na tela
A temporada prova que, apesar do recato e da correção, ainda há lugar para o sexo explosivo na tela — só que agora sob comando feminino
Nos últimos dias de um torneio juvenil de tênis, os colegas de quarto Art (Mike Faist) e Patrick (Josh O’Connor) estão suados, cansados — e sugestivamente ansiosos. Além da partida que decidirá o título no dia seguinte, afinal, eles convidaram a menina de ouro da modalidade feminina do esporte, Tashi (Zendaya), para tomar umas bebidas em seu quarto de hotel. Surpreendentemente, ela aceita o convite, aparece toda deslumbrante e sensual — e logo tem os dois na palma da mão. Conversa vai, conversa vem, Tashi se senta na beira da cama, chama a dupla — os marmanjos correm para o seu lado como cachorrinhos —, beija um, repete a ação com o outro e os puxa para um enlace triplo, antes de se afastar para observá-los de lábios unidos. Satisfeita com a manipulação fácil, ela sorri e vai embora, estabelecendo assim o complexo ménage à trois que dura por mais de uma década e é o foco de Rivais, estreia picante dos cinemas.
Cinema explícito: Representações cinematográficas do sexo – Rodrigo Gerace
A cena pode não espantar pelo conteúdo, mas surpreende pelas doses generosas de algo que Hollywood aparentava ter perdido: a libido. Com estreia marcada para quinta-feira, 1º, Love Lies Bleeding — O Amor Sangra colabora para essa sensação ao apresentar o tórrido caso entre a herdeira de um criminoso e uma fisiculturista homicida, vividas pelas atrizes assumidamente lésbicas Kristen Stewart e Katy O’Brian. No thriller, o par enfrenta as ameaças do pai da protagonista, um poderoso traficante, mas ainda reserva tempo para as carícias um tanto explícitas conduzidas pela diretora Rose Glass.
A temporada dá resposta explosiva, enfim, a uma indagação que rondou o cinema nos últimos anos: é possível existir vida sexual na tela grande nos dias de hoje? Uma miríade de fatores nada excitantes indicava que não: a prioridade dos estúdios para filmes adolescentes de heróis, o avanço conservador nos Estados Unidos, as pesquisas que mostravam o incômodo da geração Z com a nudez e as cenas fortes. A eclosão do movimento #MeToo, em 2017, acrescentou a esses freios um argumento irrefutável: boa parte do que era exibido nos filmes como prazer para adultos, especialmente a partir do final dos anos 1960, foi feita com base no prisma machista da indústria — e pior: às custas de abusos morais e sexuais inaceitáveis contra tantas atrizes.
O essencial de perigosas sapatas – Alison Bechdel
Caso clássico do revisionismo da libido se deu com o cult Último Tango em Paris (leia abaixo). Nos últimos anos, buscou-se fazer justiça à francesa Maria Schneider (1952-2011), que se sentiu “violentada” por Bernardo Bertolucci e Marlon Brando nos bastidores por não ter sido avisada de que o colega utilizaria manteiga com fins capciosos na cena mais famosa do longa. Quarenta anos depois, Azul É a Cor Mais Quente (2013) causou polêmica com uma cena íntima de dez minutos cuja filmagem foi descrita como “horrível” pelas atrizes. Exemplos assim foram a senha para uma nova classe profissional se impor: os “coordenadores de intimidade”, profissionais (normalmente mulheres) que asseguram o conforto das atrizes no set.
Marlon Brando: uma Biografia Cinematográfica – Vitor Diniz
Passada mais de meia década desse novo e louvável modo de conduta, porém, a atual safra de longas chega para provar que, sim, os morros de Los Angeles ainda têm seu quê de Babilônia — ainda que a chave para acessá-la agora já não seja a mesma dos filmes que incendiaram a imaginação no passado, como 9 1/2 Semanas de Amor (1986) ou Instinto Selvagem (1992), com seu apelo principalmente ao voyeurismo masculino. O quente agora é o desejo feminino — e isso vem dando uma baita química.
Um exemplo dessa nova forma de ousadia é Pobres Criaturas, filme do diretor Yorgos Lanthimos em que a vencedora do Oscar, Emma Stone, encarna uma criatura com corpo de mulher adulta e cérebro despudorado, que então se entrega a dezenas de experimentos carnais notadamente gráficos. Para as múltiplas cenas, ela teve o auxílio de uma coordenadora de intimidade, mas também tomou as rédeas para si, assumindo o papel de produtora do longa. “Quando dizem que o filme é exemplar do olhar masculino por ser dirigido e escrito por um homem, estão negando minha colaboração artística”, disse em conversa com a colega Olivia Colman.
Cinquenta tons de cinza – E L James
Seguindo a trilha de Emma, Zendaya é a produtora que está no comando de seu próprio “trisal” em Rivais — que, apesar de não conter cenas explícitas, exala malícia a cada curva. Já Kristen Stewart, homossexual assumida e militante, pode chocar quem só se lembra da mocinha da franquia juvenil Crepúsculo: em O Amor Sangra, ela está soltíssima — postura que credita ao clima construtivo e de diálogo no set. “É como ter uma conversa aberta sobre o que todos desejam e, assim, proporcionar uma ótima transa”, já resumiu. As novas musas do prazer no cinema são senhoras de seus corpos — ainda bem.
Tela quente
Três momentos do cinema que dizem muito sobre a moral sexual de seu tempo:
Último Tango em Paris (1972)
No embalo da contracultura, o filme de Bernardo Bertolucci resumiu uma era de erotismo nas telas. Hoje, porém, é condenado pela visão machista e pelos abusos que a atriz Maria Schneider teria sofrido em cenas com Marlon Brando
Ninfomaníaca (2013)
Com a ascensão conservadora nos Estados Unidos, coube ao cinema europeu manter viva a chama da libido — e ninguém foi mais radical nisso que o dinamarquês Lars von Trier, com o longa em duas partes cheio de lances explícitos
Cinquenta Tons de Cinza (2015)
A escassez de desejo atingiu o fundo do poço com a trilogia baseada nos livros de E. L. James, na qual fetiches “proibidos” ganham uma roupagem asséptica e água com açúcar. Um sexo burocrático e nada excitante — mas muito comercial
Publicado em VEJA de 26 de abril de 2024, edição nº 2890