‘The Chosen One’ e mais: as visões explosivas sobre Jesus nas séries
'O Eleito' causa furor ao sugerir que um adolescente pode ser o novo Jesus Cristo — premissa curiosa, mas que virou campo minado para as atrações de TV
Diz a Bíblia que Jesus, após sua ressurreição, passou quarenta dias entre seus seguidores antes de finalmente partir, subindo aos céus. Mal haviam se recuperado da cena, os fiéis receberam a visita de dois anjos trazendo a notícia espantosa de que, um dia, o Messias voltaria ao plano terreno. A promessa, até hoje, causa comoção nos vários segmentos do cristianismo — e também vem fazendo barulho na televisão. Partindo da premissa “e se Jesus já estivesse entre nós”, a minissérie da Netflix O Eleito acompanha a história de Jodie (Bobby Luhnow), um garoto americano de 12 anos que realiza os mesmos milagres de Cristo e, logo, é tratado como sua nova encarnação. O adolescente demora a assimilar e a aceitar seus “poderes” — mas, quando os abraça, toma rumos um tanto questionáveis.
Retratar a figura de Jesus na ficção tem sido um campo minado para diretores e roteiristas desde os primórdios do cinema e da TV. Para não ofender o público religioso, sensível a alterações no texto bíblico, as produções de época costumam ser rigorosas ao adaptar os Evangelhos — às vezes, até as raias do exagero: o polêmico A Paixão de Cristo (2004), de Mel Gibson, se propõe a ser tão fiel às Escrituras que é falado em aramaico, latim e hebraico, e não economizou na violência gráfica da crucificação. Atualmente em sua terceira temporada, a popular série bíblica The Chosen caiu na malha fina desse escrutínio ferrenho por imaginar, com liberdade criativa, como seria a vida das pessoas ao redor de Jesus — sendo o próprio retratado com um toque extra de humanidade.
Enquanto isso, na seara de O Eleito, os que se atrevem a imaginar um Jesus contemporâneo o fazem sem as amarras de um texto original: afinal, há poucas informações na Bíblia sobre como se daria a volta do Messias, e o pouco que consta é narrado de forma cifrada. Assim, séries e filmes dispõem de um campo fértil para a especulação ficcional, mas estão sob eterna vigilância: além da fé cristã, a muçulmana e a judaica também aguardam um Salvador.
Um exemplar recente que entrou na mira das três religiões foi a série Messiah, de 2020, também da Netflix. Na produção em dez episódios, o protagonista Al-Masih (o ator belga de origem muçulmana Mehdi Dehbi) é um líder espiritual com pinta de Jesus que surge em meio à Guerra da Síria. Assumindo a figura de um refugiado, conduz árabes à fronteira de Israel, causando um dilema geopolítico. Fora das telas, outro conflito se desenhou: autoridades da Jordânia, onde parte da trama foi gravada, censuraram a exibição de Messiah. A série foi acusada de ofender a fé muçulmana por um detalhe capcioso: ela tentou ser provocativa ao colocar um árabe na pele do suposto Messias, mas o nome do personagem causou furor — pois o Anticristo do Islã também se chama Masih. O imbróglio culminou no cancelamento da promissora produção, que ficou sem uma segunda temporada ou desfecho (a Netflix utilizou o período incerto da pandemia como desculpa).
Para além da controvérsia, Messiah trazia uma alfinetada à tradição judaico-cristã ao refletir sobre como o mundo trataria o Messias caso ele ressurgisse entre os marginalizados no Oriente Médio — em 2006, o filme O Filho do Homem, sucesso no meio indie, apostou na mesma provocação, ao situar a segunda encarnação de Cristo no continente africano. O Eleito parte da mesma premissa para, em seguida, subvertê-la. A trama foi baseada na graphic novel American Jesus (Jesus Americano, em português — título mais explícito que a tradução O Eleito), assinada pelo controverso autor escocês Mark Millar (de Kick-Ass). Escondido com a mãe num vilarejo mexicano, Jodie é um garoto americano de olhos azuis que, ao realizar milagres, é alçado ao posto de divindade local. A jornada revela desde a ganância de um pastor evangélico até a ingenuidade de miseráveis que se apegam à fé em busca de alívio. Acreditar ou não que se está diante do verdadeiro Messias é uma questão espinhosa.
Publicado em VEJA de 1º de setembro de 2023, edição nº 2857
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